Sobre lábios, lábias e Luiza

"e por falar em paixão, em razão de viver, você bem que podia me aparecer..."

Vinícius de Moraes

depois de duas generosas taças de vinho do Porto e de uma inspiradora conversa sobre o assunto, resolvi tomar coragem de escrever, de uma vez por todas. sobre o quê? é claro que é sobre uma mulher, como sempre. aliás, nesse caso, uma menina, na época uma menina. Luiza. Com Z, o que a faz um pouco mais única que as demais luisas que existem por aí.

eu, com onze anos de idade, nunca tinha sentido o peito queimar, nunca tinha suado frio, nunca tinha gaguejado por ninguém. por mais que eu apague um cigarro numa taça de vinho vazia, eu me sinto como aquele menino novamente. o mesmo jeito, querendo fazer pose e falar como adulto. o menino que tirava boas notas mas conversava demais, e que de repente ficava quieto. na hora da chamada a professora falava "Luiza Carvalho", e eu estremecia o corpo todo. aquela menina que sentava duas cadeiras na minha frente balançava a cabeça ao levantar o braço e respondia "presente". esse movimento todo pra mim durava umas duas horas. sem saber como ou porque, eu degustava lentamente esse momento. aquele pescoço bronzeadinho de Guarapari, aquele cabelo castanho impecável de propaganda de shampoo, longo. aquele bracinho plácido com seu movimento... presente.

ela se virava de lado pra falar com sua amiga Gabriela. e eu ficava roxo, rosa, vermelho, azul, ria, ia no banheiro quando ela dava a menor olhada de lado pra mim, falando com a amiga. não sabia se corria pra ela ou pro outro lado, só sabia que precisava muito correr. formamos duplas. eu, ela, Gabriela e Artur, um amigo meu - que gostava da Gabriela. a proximidade com aquela menina me provocava um frio e tamanha tremedeira, nas primeiras vezes, que só senti de novo há 0º em Gramado e com outra menina alguns anos depois. mas fingi que estava tudo bem e desenvolvi tudo o que eu poderia saber sobre o "trabalho". ela ria nervosa igual a mim. seus olhos castanhos e sua boquinha rosada tinham o vício de procurarem meus olhos, e vice-versa. esse brilho rápido entre conversas triviais me marcou pelo resto da vida como um sinal de que "tudo está caminhando pra onde eu quero".

os trabalhos passaram a ser todos os dias. todas as duplas eram nós dois. ela era, no começo, a menina da frente, calminha, quietinha. continuava com as boas notas, mas já estava conversando demais. a professora disse que antes de me conhecer ela não era assim. ouvi isso de amigas de garotas muitas vezes depois, durante minha vida. habituei-me a Luiza. mas não poderia jamais perdê-la (o nascimento da paranóia): tinha que ser homem o suficiente pra me declarar e conseguir um beijo. o tempo era curto. sentia ciúmes de todos meus amigos. céus, e se alguém da rua dela... o que fazer? era amor mesmo, como tudo que já tinha ouvido falar até então provava! era aquele, meu Deus, o amor da minha vida, o eterno amor de fogo!

escrevi uma carta. ela leria e saberia de tudo pelas palavras. pela primeira vez na vida produzi literatura, fiz citações, contei minha vida, argumentei. era alta madrugada. rolei na cama a noite toda pensando na Luiza e no amor. e no beijo. num ímpeto de super-herói, rasguei as cartas todas, embolei papel e dever de casa juntos e pensei: "de amanhã não passa! tem que ser falado, escrever é coisa de boiola!" (até hoje ainda tenho ideias assim).

e o dia seguinte foi um suplício. um nervosismo terrível e sem fim. minutos, minutos, segundos, segundos, caramba. ensaiei frases prontas, Shakespeare, brincadeirinhas, cantadas. quando me dei conta ela estava passando pelo portão pra ir embora. meus ossos gelaram, mas disse ao amigo do lado pra esperar. passos rápidos e tensos, puxei a mochila dela. ela assustou com a força:

- oi? abrindo os lábios.

- eu tenho uma coisa pra te falar - olhos nos olhos -

- sim, minha van, eu tenho que

- eu gosto de você e quero te beijar.

ela ficou vermelha na mesma hora. abriu os olhos, riu nervosa, tentou se virar. puxei-a pelas mãos, fechei os olhos como um mergulhador prestes a saltar sobre o abismo mais profundo do oceano ou como alguém que salta de bungee jump pela primeira vez e dei um beijo em seus lábios rosadinhos de verão. coisa de trinta segundos. prendendo a respiração. ela riu, olhou pra baixo, olhou de volta, riu de novo e eu disse tchau. como todo bom homem faz, fui tirar vantagem com meus amigos.

um dos amigos comentou que eu sou um cara muito atitude (até hoje ainda ouço isso de alguns amigos), mas que eu só disse tchau. "só tchau?!", "é uai, só tchau", respondia. você deveria ter falado "tchau, amor". e aquilo batia fundo dentro da minha cabeça, esse tipo de comentário "você deveria" me complica desde então. hoje em dia o "você deveria" geralmente vem de mim mesmo, no entanto.

numa noite de sexta-feira como essa, onde está Luiza Carvalho, de BH, 21 anos de idade? será se já se envolveu em metade das confusões que eu pra chegar nessa idade, viva? será se é solteira e louca como eu, sem vínculos com ninguém? faz faculdade, ou simplesmente está em Londres fazendo um intercâmbio - e nesse momento curtindo uma balada - pra depois ver o que faz da vida? se ainda mora em BH, será se nos encontraremos muito em breve? um esbarrão na rua, e o comentário "eu te conheço de algum lugar...". será que fiz dela a mulher que ela é hoje assim como ela fez boa parte do homem que sou? deveria realmente ter falado "tchau, amor"? (acho que não!) sei lá! não adianta fazer pose de adulto pra vida... com licença que eu vou rasgar essa crônica junto com minha carteira de trabalho e comprar minha passagem pra BH no próximo vôo... que do próximo vôo não passa!