O passado, uma lágrima, um sorriso.

O relógio desperta de maneira intermitente e enervante, seu estardalhaço faz ecoar dentro do meu cérebro. Abro os olhos com certa dificuldade, ainda era cedo, para ser preciso; 05h30min minutos, o sol ainda não havia dado seu fulgor à madrugada úmida, o orvalho ainda era visto sobre as plantas rameiras, bem como no para-peito da janela do quarto.

O peso do corpo ainda era grande, após a longa noite de descanso, a preguiça fazia-se presente mais do que tudo. Minha vontade era continuar ali, mumificado, olhando as horas passar em silêncio.

O cheiro doce da vegetação no quintal fazia com que meus pulmões sentirem-se renovados, minha alma, meu cérebro e meu bom senso lembravam-me que era chegada à hora de preparar-me para seguir em direção ao trabalho. Porém a preguiça era maior, virava-me para o lado, observando os pássaros cantando alegremente, saltitantes, despojando energia. Naquele exato momento me pus há, questionar:

“Porque sinto tanta vontade de permanecer inerte com todo meu tamanho, e estas criaturinhas leves e delicadas esbanjam tanta energia, esta que me falta em certos momentos?”

Ainda pensativo, sou surpreendido por um afago delicioso, sinto aquelas mão calejadas pela vida, porém, ao mesmo tempo tão macias quanto a uma luva de seda, a ternura e afeto, junto a um perfume que bem faz lembrar a fragrância das flores da árvore no quintal repleto de tantas outras, ”A dama da noite”, mas, esta era diferente, fazia e ainda faz parte da minha história. Este carinho veio seguido de um doce e delicioso beijo na minha testa.

Tratava-se não de um simples beijo, tratava-se do beijo da mulher que mais amei e ainda amo, nunca vai existir alguém como ela. Não consigo esquecer ou superar sua ausência física, sei bem que ela está imortalizada em meu cérebro, em meu coração e em minha vida.

“Era minha avó! “

O sorriso era minha eterna recompensa, daquele momento em diante, as cores do mundo modificavam-se, tudo era uma só alegria e satisfação. Até nos dias chuvosos era assim, parecia que o amor dispensado por ela ao meu coração causava uma imensa transformação, uma criatura suave e singela com voz doce e macia, tinha o poder de pacificar, fazer florir o mundo, torná-lo mais humano e prazeroso.

- Bom dia meu netinho!

- Dormiu bem? - O cafezinho está pronto e servido, vá tomar seu banho enquanto passo sua camisa. Hoje o dia vai ser lindo e proveitoso, mais um dia feliz em nossas vidas meu amor! - A toalha está no banheiro, à água já esta temperada e tem shampoo no peitoril do vasculhante. Mas, não demore para que o café não esfrie. Quando você sair do banho eu já estarei te esperando à mesa meu amor. Há! Não esqueça de se barbear, apesar de pouca, mas, você fica mais bonito do que já é!

- Não esqueça de calçar as chinelas, seu corpo está quente da cama e se pisar no chão frio pode ficar resfriado.

Assim, após o café e um pequeno e rápido pedaço de queijo minas para enganar o estômago, sim, pois nunca fui de comer bem pela manhã, só ao chegar no trabalho que conseguia realmente comer direito: um costume antigo, se é que se pode dizer assim.

Um outro beijo na testa seguido de um caloroso abraço eterno, isto vale mais que um milhão de dólares, Acompanhava-me até o portão principal da nossa casa, lógico, isto não antes de brincar rapidamente com minha cadela “Gugu”.

Assim, exatamente assim, envolvido em carinho puro e singelo, para não exorbitar falando amor, de dona Adélia, iniciava-se meu dia de trabalho. Apesar dos meus 16 anos, eu já trabalhava desde os 13. Meu pai sempre foi um ser esquisito e de uma conduta totalmente ignorante e sem propósito. Minha mãe, totalmente cega e dominada por ele, era uma doméstica de luxo. Vivia de adornar em caprichos minha irmã caçula, a qual era o xodó do casal. Sempre fui desgarrado dos meus pais.

A casa onde morávamos era dupla e independente, logicamente, eu não vivia com eles, preferia minha eterna mãezona.

Esta sim. Éramos cúmplices, vivíamos um para o outro. Após a morte do meu avô, isto tornou-se uma obsessão. Meu tio. Um quarentão alcoólatra e vagabundo. Vivia pelos botequins da vida arranjando confusão e maledicências. Era a tristeza da minha avó. Toda a noite tinha show, xingação, ofensas a ela, isto quando não ousava agredi-la fisicamente.

Porém, Meu avô foi sábio, ensinou-me a manusear com perfeição sua “Pistola 7.65”, esta era o ponto de diferenciação entre a cachaça e a sobriedade. Quando o limite chegava ao seu final, lá estava eu com ela em punho encostado na porta do nosso quarto observando a cara do cretino discutindo com minha avó. Quando percebia que eu estava disposto a por fim à discussão, trancava-se no quarto e de lá só saia após curar sua cachaçada. Logicamente, eu e minha avó dormíamos com a porta do nosso quarto fechada e com chave por dentro.

Minha avó era uma mulher de boa conversa e culta, filha de Italianos, chegou ao Brasil com 11 anos, ao 15 já estava casada com meu avô. Com esta bagagem de vida, conversávamos muito, fazíamos planos, riamos animadamente. Os conselhos, foi o maior dos presentes que já recebi em toda minha vida, muito me valeu e valem até hoje. Com ela, tive minha formação moral, desenvolvimento de caráter, educação em todos os sentidos.

Quando tomei a decisão de trabalhar fora, ela deu sua total aprovação, ao contrário do déspota irracional e prepotente do meu pai. Ele achava que filho dele só poderia fazer o que ele mandasse e o que ele achasse certo e ponto. Fez assim com minha mão. Era formada em contabilidade e foi proibida de exercer a profissão por imposição dele. “Mulher minha não tralha fora de jeito nenhum, eu sou o homem desta casa, come o que eu quiser e só faz o que eu mando.” E olha que o bestalhão não ganhava salário nem para se manter com dignidade. Quem fazia compras do mês era minha avó, luz era ela que pagava, colégio, roupas para nós, etc, etc. Minha decisão foi em caráter irrevogável, quando ele soube, já estava trabalhando. Foi um estardalhaço, só que, minha avó peitou o cidadão em minha defesa. Não precisou nem recorrer aos detalhes citados anteriormente. Não se tocava neste assunto em casa. Era proibido falar do meu trabalho. A bem da verdade foi sacrificante para mim. Tive que passar a estudar à noite, isto causava-me um cansaço maior do que eu estava acostumado, mas, segui em frente enquanto deu. No fundo eu acreditava no futuro profissional dentro do meu país. Acreditava que o trabalho especializado e diplomado não rendia frutos e muito menos renda justa. Foi exatamente aí que eu pequei em minha vida, pior, fui enxergar isso aos 35 anos. Até hoje pago um preço caro pela minha imbecilidade juvenil. “Eu vivia muito, comprava minhas calças Lee, camisas Lacost, Hering, tênis Bamba branco ou Rainha, era o tpo de linha naquela época.” Mas, a vida foi ficando ruim, eu sabia que vivíamos uma ditadura militar, abusos, roubalheira, os empregos foram desaparecendo. Coisa boa só com “Pistolão”. No colégio, minhas redações eram censuradas. Volta e meia minha mãe era convocada a comparecer para escutar reclamações comportamentais. Minha rebeldia era flagrante: Cabelos compridos, fumava, bebia cuba libre, matava aula para pissar as menininhas escondido em ruas escuras. Logo em seguida veio a época das cervejadas, mulheres mais velhas com poder aquisitivo de alto padrão. Escrevia muito, porém, nada tinha alor ou era aceito naquela época. Ainda hoje vivo a discriminação pelo meus temas e radicalização. Não gosto de meias palavras.

Carro! A palavra mágica. Fusquinha com tala larga rebaixado, volante formula 1, radio FM, toca fitas, os grandes festivais e por ai a fora. Atentados à bomba, subversão da direita criminos para culpar a esquerda. Fidel Castro em Cuba.

Com isto, via-me distanciando-me do amor da minha vida. Mas, isto não era e nunca foi verdade, naquele momento sentia-me assim. Um verdadeiro desertor. Quanto a minha avó. Ela por sua vez sabia que isto aconteceria mais cedo ou mais tarde. Eu continuava a viver com ela, mas, as conversas tornaram-se diferentes, a era menino havia ido embora com o amadurecimento imposto pela vida. Uma rotina incontestável.

Hoje, aos meus 53 anos, não ha tenho mais fisicamente. A casa que tão sagrada e significante foi para mim, hoje não me diz mais nada. Poucas vezes paro para observá-la. Não tem mais alma, espírito, luz, energia. Hoje, não passa de uma casa de cômodos de aluguel onde as brigas e a infelicidade se fazem presentes no dia a dia Não tem mais as árvores, as quais tanto subi, corri pelos telhados. Não sinto mais ao acordar aquela voz santa e suas mãos de seda a acariciar-me. Hoje é uma vida fria vazia, sem objetivos. Sinto ainda hoje o cheirinho daquele café coado em um coador velho de flanela surrada, O buli de alumínio, os bolos e guloseimas que ela tanto tinha prazer em fazer para o meu deleite. Hoje, não posso mais deitar em seu colo e falar que a amo como nunca amei ninguém. Olho para os lados e vejo a vida vazia e sem sentido. Tudo gira ao redor do interesse. Por outro lado, restou minha mão: A amo! Mas é diferente este amor. Não consigo ser como era com minha avó, mãe dela. È curioso e inexplicável como os amores se diferem uns dos outros, afinal, fui gerado no útero de inha mãe, no entanto, mesmo morta, amo minha avó como se ela fosse até hoje minha verdadeira mãe.

Não sei até agora como consegui falar, ou melhor, escrever sobre isto. É árduo e dolorida certas lembranças que mantém a certeza que estes momentos jamais serão revividos. Apenas nos sonhos de saudades. Quanto tempo perdi distante deste amor, trocava estar com ela pra vivera vida, mas dentro do peito estava cravado em meu coração, como ainda está. Também sei que trata-e da ordem natural das coisas. O ser humano vive fases de necessidade de adotar o egoísmo. Não o egoísmo medíocre, o egoísmo pelo desenvolvimento, seja em que sentido for. Não posso ser hipócrita e deixar de enquadrar-me dentro deste contexto. Sei exatamente o que restou:

O passado, uma lágrima, um sorriso.

O Bruxo

Bruxo das Letras
Enviado por Bruxo das Letras em 03/04/2011
Reeditado em 24/10/2014
Código do texto: T2887426
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