O Amor
O homem  constrói o mito  da  perfeição pela dificuldade de aceitar a inerente imperfeição e incompletude dos atos da vida. Somos um fazer-se sem descanso. Só temos paz nos raros momentos em que acertamos ou intuímos a existência de uma plenitude, cuja percepção escapa, logo que alcançada.
     Os casos de amor vivem rondados por frustração ou arrependimento. Não o amor. Este é íntegro, irrefutável, cristalino, pleno e indubitável, porém os amantes são precários portadores. Quase sempre o tamanho do amor é maior que o dos amantes. As pessoas tem mais amor do que podem. Daí o fardo pesado que é carregar a chance de felicidade.
     O amor é pleno, mas cada amante vive envolto numa teia de limitações. Sobrevém a eterna disjuntiva: frustração ou arrependimento. Entregar-se a um amor é abandonar outros. Optar é renunciar. E, do que se  renuncia e abandona, pode provir, depois, arrependimento. Afastar-se de um amor, ainda que por lúcidas razões, pode gerar, adiante, a frustração que se deixou de viver.
     Arrependimento e frustração são, pois, duas ameaças inevitáveis para amantes que se descobrem viáveis em pele, olho, poesia e suspiro, na mesma medida em que se sabem cercados de repressões, compromissos, impossibilidades ou, então, exorbitantes preços existenciais a pagar pela meia felicidade.
     Viver implica essa dolorosa tarefa (suplício e enigma): a de integrar esses pedaços opostos, incorporando dificuldades vivenciando a eterna imperfeição de tudo. Viver é descobrir-se inocente e virgem quando já se considerava pronto, vivido, definido e auto-suficiente. Somos fadados a ser pessoas sempre em algum limiar. Quanto mais conhecimento e vivência, novos limiares.
     O sofrimento do homem deriva dessa estranha divisão de sua alma: ele precisa de nitidez, de encaixes perfeitos, de caminhos retos, mas só lhe é dado viver situações provisórias e incertas, sinuosos pedaços de retidão, o que o leva a manifestar, até pela mentira, as suas mais fundas verdades.
     O amor, porém (não os amantes),rompe esse exercício de sofrimento, pois liga o homem a uma finalidade. Por isso o amor permite o sabor-saber, fugidio e delicioso, de algo pleno, sempre fora e além de nós, mas vivido em nós (por isso enigma), uma certeza adivinhada (e breve vivida) de plenitudes impossíveis.
     O amor traz a certeza secreta de uma instância de paz, plenitude e perfeição da qual a vida é um aprendizado, por isso incompleta e inacabada, provisória e sempre em busca. O amor é o filme, mas a vida e os amantes são o trailer de um filme que se intui possível, porém nunca alguém o verá.
     O amor é pleno, mas os amantes precários, impossíveis, atrapalhados por eles mesmos e suas opções sempre “certerradas”.
     No amor, a todo ideal corresponde algum erro real de exercício. Por isso, quem ama vive a misturar pedaços de verdades pela impossibilidade de viver a totalidade. Aqui residem o suplício e o enigma de viver: o amor é total, pleno, mas a vida de quem ama é feita de pedaços, de renúncias ou arrependimentos, de impossibilidades ou carências.  Aceitar o enigma sem o deslindar é aprender a viver; é amadurecer: exige trabalho interior penoso, grandeza, equilíbrio e autoconhecimento.
     Somos um todo fragmentante que, para se recompor e harmonizar, precisa viver as divisões, os sofrimentos e os açoites das mentiras que conduzem às nossas verdades mais profundas. Viver  em  plenitude todos os pólos de que somos compostos, eis a ressurreição em vida. O amor, em sua qualidade de rio de muitas vertentes, ajuda e ilumina esse processo de auto-desconhecimento  permanente que é a única forma de autoconhecer-se . por isso o amor é um estranhamento; e, ao vive-lo, os amantes atrapalham-se, atropelando-o.
 



Iara Franco
Enviado por Iara Franco em 05/04/2011
Reeditado em 05/04/2011
Código do texto: T2890787