O rio da vida que passa

Na hora das águas calmas, as coisas são refletidas com fidelidade. As águas turbulentas deformam as imagens. E as águas encachoeiradas que despencam estraçalham as formas. O ser humano é assim. Um coração de paz reflete a verdade. O revoltado deforma os fatos. E quando cheio de ódio, quer arrebentar tudo o que vê.

Olhando o rio que passa refletindo as coisas, encontramos semelhanças bastante próximas com o ser humano. Como nós, o rio tem origem em algum lugar. Como nós, ele percorre uma distância, ora mais longa, ora mais curta, atravessando as paisagens mais diferentes e enfrentando dificuldades constantes. Não é assim também conosco?

O rio, como a nossa vida, é fugaz e buliçoso. Nada o detém. No trato que recebe mostra igualmente sua semelhança com o humano. Há aqueles que tratam o rio com respeito e buscam preservar sua pureza e beleza. Há aqueles outros que o maltratam vendo nele apenas uma cloaca para detritos e corrupção de toda espécie. Há ainda os que o reprimem e violentam, desviando-o de sua natureza para escravizá-lo a interesses, como acontece com o Velho Chico.

Como nós, o rio precisa de amigos. São os afluentes que o enriquecem com suas águas novas e fazem-no crescer em estatura. Como viver sem amigos? É o que o rio nos diz quando acolhe prazeroso o braço de água que o procura para fazer parte de sua vida.

Às vezes o rio transborda, alagando tudo o que está ali por perto, como se perdesse a paciência porque o provocaram demais. Isso acontece conosco (não deveria acontecer) e os que estão mais próximos é que suportam o destempero emocional. Não raro, os que mais nos beneficiam acabam sendo os mais maltratados.

O rio não envelhece e se renova sempre. Suas alterações são calculadas pelo chão que percorreu. E depois de muita andar, ele alarga suas margens, como o Paraíba em Campos dos Goytacazes, torna-se mais denso e profundo. Fica mais fácil navegar por ele. É como se a experiência do percurso o fizesse mais útil. É assim a nossa vida. A maturidade faz-nos mais experientes e mais prontos para acolher e compreender. É a época mais fértil da vida.

Quando o rio se aproxima do oceano sua carreira está para terminar. Mais um pouco e suas águas vão se lançar no coração do imenso mar, ali onde todas as águas se encontram e parecem ser uma só, como na minha infância eu contemplava emocionado e saltitante o espraiar do Itapemirim.

Nós também nos libertamos dos limites do tempo, para mergulhar confiantes no espaço de Deus, ali onde há muitas moradas para todos. Os limites angustiantes das margens estreitas desaparecerão, e as cachoeiras atordoantes ficaram para trás. É a hora tranquila da paz e as inquietações adormecem para sempre, semelhante ao Tietê atravessando Birigui ou o Prata majestoso de Colônia Sacramento.

Quando você contemplar o rio que passa (Mogi, do Peixe, Camanducaia, Paraná, Pardo, Piracicaba, Itabapoana, Muriaé, Doce...) não se iluda. É você que passa e outros depois de você é que o contemplarão, pois ele permanece e se renova.

Por isso existem os rios: para nos fazer atentos à vida que passa.