A curiosidade mata

-Padre, não me lembro de um dia ter querido a morte de alguém; sempre respeitei a vida do meu semelhante.

-E o que o trouxe ao confessionário, meu filho?

-Em um determinado momento da minha vida, quis que a morte se aproximasse rapidamente de uma pessoa, que eu nunca conheci...

-Como isso aconteceu, meu filho?

-Era tarde da noite, eu voltava de ônibus de uma cidade vizinha, sonolento, ocupei um banco só para mim, e imaginei que nada me impediria de dormir, até chegar ao meu destino, ledo engano.

Bem atrás do meu assento, uma garota também ocupava uma poltrona, sem que houvesse alguém ao seu lado, mas a sua solidão durou por pouco tempo, logo uma outra garota sentou-se ao seu lado, e, curiosamente, as duas se conheciam de longa data, voltando a se reencontrarem naquele ônibus

Os cumprimentos foram efusivos, mas por pouco tempo, pois aquela que iniciara a viagem, quando ouviu a pergunta...-E como vão seus pais? Decidiu contar em detalhes a morte do genitor

-Amiga, você não pode nem imaginar como meu pai morreu.

-O que aconteceu? Me conta

-Até hoje, depois de 4 anos do desenlace, a angústia ainda me tortura.

-Lamento muito amiga, mas o que aconteceu?

-Ele estava ótimo, nada poderia sugerir que nossa separação estava tão próxima de acontecer. Naquela manhã, do dia em que ocorreu a tragédia, ele acompanhou minha mãe às compras, como se a morte estivesse disposta a fazer surpresa.

O ônibus, indiferente ao clima que se instalou, avançava de forma ininterrupta, acredito que até desprezando passageiros pela estrada, o que aguçava minha curiosidade

-Tome o lenço, assoe o nariz, procure se acalmar e me conta

-Foi o pior dia da minha vida, com a morte do meu pai chegou ao fim minha alegria de viver

Eu, sentado à frente, via, à distância o ponto onde deveria descer, e necessitava, com a curiosidade aguçada, pedia, em meu íntimo, o fim daquela narrativa, uma curiosidade mórbida, eu sabia, mas tomou conta de mim

Dei sinal para o ônibus parar, eu tinha que descer, já era tarde da noite, não me contive, levantei-me, debrucei sobre o encosto de minha poltrona e reclamei, em tom alto:

-Se você queria criar um drama, deveria escrever um roteiro de novela e enviar para uma televisão mexicana, todos no ônibus aguardam a morte do seu pai.

Falei e desci, já arrependido de ter sido tão grosseiro com a sensibilidade da moça, fui, de forma equivocada, conduzido pela minha curiosidade

-Padre, eu precisava saber como o homem morreu...

-Reze Três Pai Nosso e vá em paz meu filho, e se um dia você vier a saber o fim da história, por favor, volte para me contar

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 16/04/2011
Reeditado em 17/04/2011
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