Magia e despertar.

Foi bem ali, no antigo curso primário, que percebi a importância de andar. E que o ato de andar rimava com descoberta, aquela sensação espetacular de estar viva e podendo construir. Vivi ali os primeiros grandes momentos da minha historia. Percebi, então, que magia existia de fato e que era preciso se comprometer com ela para que novas invenções e grandes vibrações acontecessem durante toda a longa caminhada!

Nas bases das carteiras escolares do meu Centro Educacional SESI n. 44 aparecia uma palavra em destaque no ferro: BRASILEIRA. Quem sabe, essa palavra tão grande e intensa tenha invadido o meu coração a partir daqueles meus 6 anos.

Carteiras escuras, com uma suave cova para se colocar o lápis e nada que realmente se relacionasse à infância. Nos anos 60 a escola ainda era um local em que se via as crianças como adultos em miniatura e tínhamos que entender tudo e bem rápido.

E chegou o primeiro dia. Era março de 1965. Confesso que senti que uma responsabilidade imensa iria marcar a minha trajetória a partir daquele início de ano. A escola era dura. As professoras também. Nem sorriam para nós. Não me recordo de alguma delas nos desejar uma boa tarde ou um bom final de semana. Mas eu queria mesmo aprender e muito e cada letra, cada palavra nova era o despertar de um sonho: eu queria aprender mais e mais e sabia que só mesmo a professora daria o tom dessa longa estrada.

De largada, ganhamos caderno e lápis que nos acompanhariam todos os dias naquela escola do Sesi no bairro operário do Cambuci.

Mas na primeira aula eu percebi que não conhecia nada do mais básico: a professora mostrava um caderno, a folha e dizia que na folha existiam linhas. E logo começamos a escrever a letra A. E a cada letra nova, um carimbo de alguma coisa, objeto ou animal que começasse com aquela letra. E tínhamos que preencher a página toda com aquela mesma letra e isso nos dava motivação. Era bom. Não me lembro de nenhuma bobagem, nunca uma manifestação de desrespeito. Antes, a professora sabia e nós não e tínhamos que aprender muito com ela e isso era tudo.

E fomos passando de ano. Sem auês de mães desesperadas. Quem não aprendesse fazia a série de novo, sem fricotes.

Mas foi ali que comecei a tomar algumas decisões sérias na vida, por exemplo: “quando eu tiver um filho não vou fazer isso ou aquilo. Vou tratar melhor”. Eu percebia uma dose enorme de autoritarismo – por qualquer coisa - e não era só lá. Eu ainda não sabia, mas, naquela época, a ditadura começava a mostrar os seus dentes encardidos, afiados e medonhos para qualquer ser pensante. Numa das tardes, indo para casa, um caminhão repleto de milicos, exibindo suas armas, passou por nós, olhando a diante, em pleno largo do Cambuci. Todos sisudos, se achando donos do mundo e nós ali, parados na calçada, apenas tendo que esperar a passagem daqueles que acreditavam que teriam o poder garantido para sempre. Ledo engano!

Foi na escola primária que entendi o que a minha avó falava sobre o respeito, principalmente em relação aos mais pobres. Inesquecível para mim foi um menino, aluno da minha mãe. Num dia dos professores, ele levou para ela um copo com um doce – parece que era de goiaba, que aqui no sul se chama chimia. Mas ele levou de casa, escondido no bolso, uma colherinha de café. Comeu um pouco do doce antes de ofertar o copo para a professora. Mas disse que a mãe dele havia pedido que devolvesse o copo. Eu me lembro da marca da retirada do doce. Como aquele menino deve ter passado vontade de comer mais um pouco e se censurou por isso! Sabia que era preciso entregar aquele copo para a professora: era o dia dela, como ele comeria mais um pouco? Em agradecimento, a minha mãe fez um tanto de arroz doce para preencher o copo e devolvê-lo para a mãe do menino. Tudo isso me levou a acreditar que era preciso partilhar com consideração e não apenas dividir. Fazer a empatia, tentar entender o que o outro entende, embora seja, às vezes, tão difícil.

Mas confesso que não me apaixonei por aquela escola.

Calada, eu esperava que a semana passasse rápido. Numa das tardes de uma sexta-feira o meu pai foi-nos buscar com o seu tradicional fusca. Paramos à porta da farmácia, onde invariavelmente meu pai fazia suas compras e eu apenas pensei: “tem sábado e domingo pela frente. Que bom!”

Queria aprender muito, mas eu sonhava com alguma independência, descobrir alguma coisa sozinha, ser dona dos meus passos, assumir riscos. Um dia eu haveria de trabalhar, ganhar o meu dinheiro, comprar as minhas coisas. Quem sabe, eu poderia, um dia, ensinar alguma coisa a alguém. Eu queria ter olhos mais abertos, coração mais vivo, uma pulsação só minha e caminhar bem mais rápido porque eu percebia que o mundo era grande. Eu queria que ele fosse, pelo menos um pouco, meu também.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 17/04/2011
Reeditado em 18/04/2011
Código do texto: T2914864