Do fundo do baú

Somos cinco. Quatro irmãos e eu. Sou a do meio. Sou única filha.

Fui mimada. De certa forma, ainda sou. Continuo sendo a única irmã de meus irmãos. Só me apercebi do fato de ter sido mimada, há pouco tempo, quando ainda fazia terapia, falando da minha infância.

Provavelmente eu não tenha abusado do fato, pois nunca me acusaram disso, nem me criticaram. Fui uma menina pacata, numa família pacata, numa cidadezinha que continua pacata.

Na vizinhança, só havia meninos. E meninas não brincavam com meninos. E eu, reclamava com minha mãe, pois queria acompanhar meus irmãos.

Naquela época, só havia os dois mais velhos. Quando ela permitia que eu fosse com eles eu acabava voltando chateada, bem antes deles. Os guris não me queriam por perto. Meus irmãos me protegiam, mas a gurizada era cruel. Claro que meus irmãos preferiam que os amigos me espantassem com suas brincadeiras um tanto agressivas, do que ficarem fora do joguinho de futebol.

No campo em que jogavam, ficava o gado do dono das terras. Havia algumas casas em torno, cercadas de arame farpado. Nossa casa ficava na parte mais elevada, um pouco distante dali. Eu costumava ficar sentada sobre um cocuruto de terra, desses que há nos pastos.

Acho que desisti de acompanhá-los, no dia em que um dos guris mais velhos da turma chutou a bola nas minhas costas com tamanha força, que levei alguns minutos até conseguir voltar a respirar. A dor se espalhou até o abdome. Fiquei ali, sentada, encolhida, um bom tempo, lutando para não chorar na frente daqueles moleques. Eu tinha entre seis e 7 anos de idade.

O jogo parou. Parecia que ninguém mais respirava.Quando me recuperei, levantei em câmera lenta, atravessei o campo entre o gado que pastava tranqüilo, o pátio de uma vizinha e fui subindo a ladeira, muito devagar.

Chegando em casa, minha mãe me olhou e não falou nada. Esforcei-me para parecer natural. Acho que meus irmãos também não comentaram nada, quando voltaram. Talvez ninguém tenha percebido realmente, o tamanho da agressão que eu sofrera. Fora física e moral. Porque o chute fora intencional. Eu não atrapalhava o jogo. O menino estava fora do campo, atrás de mim.

Às vezes, quando relembro alguns desses fatos da infância, percebo que cada um tem seu próprio “baú de lembranças”. Meus irmãos não lembram desta história, eu tampouco de muitas histórias deles. (30/10/06)