Veladas vozes do mundo

E eu olho, silenciosa, pela casa. Casa de um bom tempo já. De uma grande parte da minha vida. A casa! E por ela vozes indiretas, discretas, percorrem os cantos, quase todos os espaços. Percorrem a minha alma, de muitas saudades e desejos de encontro.

No meu quarto, pendurado um espelho, moldurado por um pedaço trabalhado de couro. Anos 60.Tempos de uma juventude que buscava a paz e o amor, a sociedade alternativa da qual muito me encantei. Naquele espelho vi o meu rosto jovem, eletrizado pelas buscas e pelos sonhos! Onde foram parar as utopias dos anos 60? Não apenas minhas, mas de toda aquela gente, com as suas palavras de ordem por um mundo mais harmonioso, de fazer amor e não a guerra, repleto de desejos e cores e amores. Onde estão as esperanças? Aqueles rostos tão jovens, com suas barbas e longos cabelos, aquelas cores vibrantes e o não ao convencional?

Eu me lembro amorosamente daquele tempo e olho outros tempos.

Olho carinhosamente para uma pequena toalha da Ilha da Madeira na minha pequena estante de corredor, com tantas outras coisas igualmente importantes. A toalhinha deve ser dos anos 50, que pertencia à minha tia Evelina. Toalha ricamente bordada, colorida pelas mãos das madeirenses, quem sabe cheias de calosidades e de desilusões. Quantas delas pretendiam se casar e não se casaram ou foram infelizes e frustradas? Mas fizeram seus bordados coloridos e os despacharam para algumas partes do mundo.

Sobre a toalha, uma imagem: Nossa Senhora de Czestochowa, a Madona Negra, trazida carinhosamente da Polônia pela minha querida amiga Maria Luiza. Com ela converso e muito logo pela manhã. Silencio e ouço mais silêncio. Quantas súplicas a padroeira da Polônia deve ter ouvido especialmente nos tempos de guerra! Tantas mães a chorarem seus filhos arrancados do lar nos tempos de nazismo! Quantas moças choraram desesperadas à espera dos seus pais, à procura de comida, à procura de vida?

Ao lado, na mesma estante, peças da África, da Índia com suas fomes e injustiças e habilidade no trabalho artesanal para os turistas levarem para as suas casas um pouco da memória e da luta dessa gente.

O rádio, da minha avó, dos tempos da guerra também. Quanto ela e o meu avô devem ter ficado ali, atentos a uma boa notícia vinda de alguma parte do mundo? Algumas novelas de rádio, o Francisco Alves cantando ou mesmo Carlos Galhardo. Propagandas, ou melhor, reclames de pomada Minancora ou de óleo de fígado de bacalhau... Outro rádio, esse do tio Basílio. Eu não sei o que o tio ouvia, mas não devia ser um repertório tão diferente...

Um ferro de passar roupa, daqueles que as mulheres se esfalfavam para colocar a roupa a serviço do cotidiano! Quanto fôlego, esforço, queimaduras e bursites brotaram dali... Quantas passaram as roupas de linho para que os maridos e filhos fossem à procura de trabalho? Será que, ao passarem tantas roupas de tecidos duros, teriam algum tempo para acreditar e buscar identidade?

Um enfeite, esse do Rio Grande do Sul, presente da saudosa dona Ercina, uma vela branca adornada com arabescos dourados. A dona Ercina era sábia e muito me ensinou sobre memória e a incrível arte da compreensão.

Ainda na estante um Amon-Rá, presente da viagem da Paulinha, uma aluna e futura brilhante historiadora. Deuses do passado! Quantos escravos se esfolaram para fazer estátuas, esfiges e pirâmides monumentais? Quanto suor, chicotadas, dores pelo corpo e por toda a alma. Sempre!

E prato de adorno do Peru, de Jerusalém. Uma peça de cerâmica que eu pintei: uma senhora negra, grávida, de roupas coloridas. Dei a ela o nome de Leonor. A dona Leonor era a mãe de uma grande amiga e sei que me abençoou em momentos difíceis na minha jornada.

Na sala, o tapete da Turquia, um escaravelho egípcio, a cerâmica representando uma índia também grávida do Mato Grosso, de olhar profundamente triste e outra representação de uma trabalhadora pobre, do Maranhão, cortando carnaúba, sentada, na sua solidão. Os pequenos esquimós, esculpidos em pedra, enviados do Canadá pelo meu querido amigo de longa data, Guilherme Augusto. Outro tapete, de entrada, da China. Ah! Essas mulheres da China que servem para construir um país, mas que não têm sequer direito ao sono, que desaparecem ao vento, no meio das fábricas sem-fim, que nem conseguem ter a bênção de uma grande amizade, de um grande amor. Tudo é fugaz e elas aprenderam que não adianta correr atrás do vento.

É assim que todos sons do mundo tocam aqui, na minha casa, onde há espaço para todas as representações, todos os rostos, todas as músicas, os prantos, as perdas. Eu não sei quantas mãos fizeram esse meu espaço, que é sagrado, mas sei que foram mãos belíssimas, embora com tantos possíveis calos, mas foram mãos de gente que constrói. Gente que chora mas ri também. Gente que ganha e perde com muita rapidez e apanha e busca e peleja.

Gente que produz e não vê mais a sua obra. Se eu pudesse perguntar a cada uma dessas centenas de pessoas: “qual é a tua obra?”, certamente me responderiam: “a minha obra foi a busca”. Quem sabe a busca da dignidade ou mesmo do encontro. Para mim, encontro civilizacional e de busca de um grande amor.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 20/04/2011
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