O bicho homem

Vi um homem revirando a lata de lixo, na rua quase deserta da manhã, absorto no papel que desempenhava: catar algo para comer.

Lembrei-me de Bandeira, que disse:

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Há tempos que os bichos perderam seu lugar no revirar do lixo. Hoje o homem faz o trabalho do bicho. Hoje o homem é o próprio bicho no lixo.

A cena tornou-se corriqueira nas ruas da metrópole. Não é uma rosa que vejo brotar do asfalto. O que vejo é a dignidade do homem ir ao fundo do lixo.

E o homem se multiplica, pois vários buscam o alimento no lixo. Matar a fome que grita silencia o próprio grito que, mudo, perde-se aflito.

Não há poesia na imagem que vejo, mas tento buscar nas palavras o que talvez ninguém perceba, pois o homem no lixo tornou-se invisível aos olhos dos que passam. Anestesiamos os sentidos e fingimos que o homem não garimpa o lixo. Não é ouro o que procura. São restos do prato de um outro homem o que busca esse homem no lixo.

Posso compará-lo com o abutre. Novamente o homem toma o lugar do bicho. Do bicho na imundície do próprio lixo.

Rita Venâncio.

Rita Venâncio
Enviado por Rita Venâncio em 21/04/2011
Código do texto: T2922064
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