Crônicas de uma vida não anunciada - Luana, a filha da luz.

Aquele não seria um dia normal. Bem pensando, a normalidade dos nossos dias talvez esteja lado a lado com o inesperado; aquilo que nunca o estamos aguardando. Mas eu precisava vê-los; Mais ainda, necessitava sentir um pouco na pele as suas necessidades. Isso já era coisa de costume. Toda vez que a vida hodierna dava-me uma crua alfinetada, eu procurava entender-me sentindo as dores alhures, e esse era um lugar ideal: um local onde o perfume das rosas e o odor das mesas fartas passavam longe.

Antes vinha apenas visitá-los, trazendo algum presente para Sirizinho. O pai – o velho Siri – já tinha a pergunta soletrada na boca: “Cadê o corote?” Com Chica, a mãe, passei a levar na brincadeira. Afinal, os loucos sempre têm sua razão. E como contestar a loucura de quem nasceu apenas para vegetar na vida e sobreviver nesta “dura e bela arte de viver?”

Logo de cara, notei que agora viviam pior. Um casebre de um vão só, com paredes esburacadas e alguns “trens” jogados pelo chão. Da última vez que os deixei, estavam mais ou menos. Cuidavam de um terreno e o dono os abastecia de comida; depois fiquei sabendo que alem da comida passaram a levar bebida. Esse é o mal de muitos seres humanos – como se fosse um eterno maniqueísmo -, procuram praticar o mal onde alguém tentar fazer um bem.

“Só estou de passagem....” Tentei justificar para não ficar mais tempo. Às vezes, cansa tentar ajudar a quem não quer ser ajudado. Mas um choro, em um dos cantos do casebre, chamou-me a atenção. Um olhar triste, sobre um frágil corpinho de criança, parecia clamar por socorro. A boca suja de “toá” já mostrava a única refeição do dia. Não fiz perguntas. Sirizinho se recostou em mim e com poucas palavras selou meu destino naquele dia: “- Essa ai não vai durar muito tempo, não...” Ela já tinha mais de ano, corpo de recém nascida. Arrastava-se sobre o barro molhado, enquanto o grito da mãe se misturava ao choro reprimido.

Não sei onde os deuses aprenderam a selar o destino dos seus filhos, mas acredito em causa e efeito; acredito que ninguém sofre porque deve sofrer – mas sim, que é através do sofrimento humano (nosso e dos outros) que evoluímos a alma. Não que eu queira acreditar em um Deus masoquista, mas num efeito cascata que a vida vai tecendo para o nosso aprendizado.

- Vou passar uns dias... – o carro ficaria estacionado durante muito tempo em frente ao casebre.

Sirizinho adorou a idéia. O velho pai, trôpego e acalentado pela bebida, não ficou atrás. Chica tomou um gole para comemorar.

Naquela noite Luana tomou um copo de leite sem “toá”.

(Texto sem revisão)

Kal Angelus
Enviado por Kal Angelus em 23/04/2011
Reeditado em 29/04/2011
Código do texto: T2926574