Pasárgadas

Disse ser atriz. Não me deixou muitas alternativas para contra argumentar. Fumava um cigarro já pela metade, debruçada no corrimão de madeira que separava a calçada da área de fumantes da boate. Não era do tipo de atriz que prefiro e, muito embora minha intuição estivesse ultimamente claudicante, poderia apostar que não era atriz coisa nenhuma. Tão resignado quanto preguiçoso, dei dois passos para trás para acender mais um cigarro. Olhei seus quadris. Bonitos, ainda que escondidos por tanta calça jeans. E botas. E gola que cobria todo o pescoço.

-Irene. Não sou daqui. Quer dizer, sou daqui. São Paulo tem um pouco disso, né? A gente é sem ser. Quatro anos. Acho tudo isso meio doido. Esses muros todos, essa correria, esse jeito de se fazer as coisas com rapidez. A impressão que tenho é que não vou conseguir deixar isso daqui. Nunca mais, sabe? Acho que o que tem é uma relação meio simbiótica entre a gente e a cidade. Não qualquer cidade! É São Paulo. Vê? É claro que é bom, uma delícia. Mas mete medo, dá angústia. Mas... Desculpa. Digressões tolas.

-“ Irene. Não sou daqui”. Você falou isso: “Irene. Não sou daqui”. Me lembrou a Irene do Caetano. Sempre achei a Irene triste, sabe? Na verdade, quando ele diz que quer ouvir sua risada, acho que está se referindo a uma determinada risada, entende? Acho que ele coloca o foco numa risada específica, um gesto raro, compreende? Sempre achei a Irene da música muito triste. Sempre que encontro alguma Irene eu penso nisso.

- Você não deve encontrar muitas Irenes. E certamente nunca encontrou uma Irene Aparecida. Irenes Aparecidas só existem duas: minha mãe e eu, Maria Irene Aparecida. Mas, enfim, por que estou falando isso? Desculpa, qual o seu nome?

- Maurício?

- Engraçado. Você responde como quem pergunta. Mauricio? Fffff. Desculpe, não é nada. É que achei engraçada sua pergunta. De qualquer forma, Maurício é melhor que Irene.

- Maurício é uma possibilidade, Irene.

- Maurício é uma possibilidade. Entendi. Paulo Maurício? José Maurício? João Maurício? Que diferença faz? Todos os mesmos nomes, das mesmas pessoas, das mesmas cidades, dos mesmos cigarros... E qualquer um dos Maurícios é melhor do que a minha Irene. Você tem isqueiro?

- Tenho, claro. Entendo sua reflexão sobre São Paulo. Entendo mesmo. Toma. Acho que tem que virar seu corpo. Assim, ó. O vento tá forte e vai apagar o fogo. Isso...

- Obrigado. Não sei se são reflexões. Acho que estão mais para lamentos. O que você faz da vida?

- Músico?

- Tá, entendi. Maurício? Músico? Músico é uma possibilidade? Acertei?

- Um estado de espírito também. Sou músico. E poeta. Às vezes sou economista e advogado, médico? Bombeiro? Somos tudo e todos. É filosofia barata, mas acho que  no fundo é mais franco que piegas, né? Prefiro a música, embora jamais tenha conseguido nada com ela. Você tem outro cigarro?

- Claro, toma. Acho que atriz, ator... Somos mesmo um pouco de tudo. E os palcos também não me deram muita coisa. No fundo você tem razão. Essa mistura toda... Acho que vão roubando nossas identidades. Essa correria, esse estrago todo. Não estou sendo clara, né?

- Estou te entendendo.

- Sabe, é difícil. Tudo é complicado. Tenho saudades do meu interior, da minha vida. Vida, sabe?

- Sei, claro. Que coisa boa. Estava mesmo tentando adivinhar de onde é seu sotaque.

- De onde era, Maurício. Lembro que quando cheguei, mesmo aqui, em São Paulo, todos sorriam quando eu falava. Era divertido. ‘erres’ e ‘esses’ que provocavam algo bom nas pessoas. Hoje, nem isso. Sinto que foi meu sotaque, meu passado, meus sonhos, minha alma mesmo, sabe? São Paulo aprisiona, abduz. É ruim viver num lugar que te encanta e te mete medo, que te deixa viver e que te cobra com a própria vida. Mais digressões. Desculpe, você não tem que ficar escutando essas coisas. Dia ruim, sabe? Me diz, onde você mora?

- Pasárgada?

- Não Maurício! Pára com isso. Estou aqui, me abrindo para um completo desconhecido, falando sobre frustrações e receios... Não é justo que as respostas sejam sempre perguntas.

- Não acho que estamos falando sobre frustrações e receios.

- Isso porque você se chama Maurício e não Maria Irene Aparecida.

- Isso foi engraçado.

- Desculpa. Acabou o cigarro. Você tem mais algum?

- Nada. Já fumei o seu, lembra?

- Claro. Minha cabeça. Comecei a falar...

- Pasárgada fica a duas quadras.

- Ah! Enfim uma pista.

- Lá tem cigarros.

- E é lá que “eu tenho a mulher que eu quero na cama que escolherei”. Não é assim que termina?

- E que começa também.

- Acha que Pasárgada é como São Paulo?

- Acho que Pasárgada é como São Paulo.