Fobia de chuva.

Sempre gostei de chuva.

O som dos pingos apressados que sempre caem em um compasso ritmado. A modelagem impressionante que acontece com a areia maleável. Os respingos das poças, que fazem o caminho inverso, como se quisessem retornar para o âmago das nuvens originais. O odor inebriante do ozônio muito menos charmoso do que o cheirinho de terra molhada, mas, ainda assim fascinante.

Tudo molha. Tudo vira orvalho. As maquiagens são desfeitas. Os fios se assentam ou se rebelam. As lágrimas se juntam à corrente e passam despercebidas aos olhares julgadores. O sentimental contido se esbalda incólume na multidão e aproveita o frescor do temporal. Ele não corre e o seu guarda-chuva é pura fachada, não se importa. As lentes ficam embaçadas, mas ele não quer ver ninguém, pois sente.

Quando criança adorava vestir galochas coloridas, para ficar igual aos super-heróis. As capas transparentes ficavam do lado de fora da sala e as etiquetas nominais, quase sempre, resolviam as confusões. O banho quente, recomendado pela mãe zelosa, era quase tão bom quanto os filmes da sessão da tarde.

Quem está fadado a sofrer é o pobre do salva-vidas, que não pode compreender o prazer da natação em dias chuvosos. O perigo não é lenda. Eu sei. Por isso digo que foi o esporte mais radical que pratiquei. Recebia a advertência com coragem, como se isso referendasse meu espírito pouco transgressor.

O raio e o trovão soavam no ouvido do dono da minha locadora como a melodia mais sublime. O fenômeno impulsionava os “cinéfilos” sazonais e comigo não era diferente. A prateleira onde residia “o iluminado” ficava completamente vazia, até o genial Zé do Caixão tinha o reconhecimento nesses dias.

A pipoca estourava. O transformador estourava. A rolha estourava e a vela ardia. O dia mais feliz para os locutores de rádio, o mais cansativo para os destemidos bombeiros. Contávamos estórias assustadoras, mas só quem morria era a pilha das lanternas.

Gene Kelly cantava, dançava e sorria. Sorriamos. Mas, hoje não.

Ficou tudo para trás. Penso nas encostas assassinas, nas ocupações irregulares suicidas, na omissão do poder público, na minha própria omissão. Vejo os carros arrastados e não enxergo as vítimas submersas nas águas turvas. Leio sobre os corpos soterrados, sobre os heróis involuntários e escuto os apelos que acompanham as estações.

A vida flui na correnteza e a câmera flagra tudo ao vivo. Sinto angústia, todos sentem. Outros sentem a dor. A juventude das crianças se esvai pelo ralo, de modo literal ela cai nos bueiros destampados.

A comoção é geral. As cartas se aglomeram na redação, os estudantes debatem com revolta e os intelectuais ficam absolutamente indignados. A solidariedade ganha verbete de destaque e a ombrofobia fica na moda. No entanto, basta apenas uma semana ensolarada para apagar toda a culpa. A memória seletiva cumpre seu papel, porém, quando vejo os raios de Zeus cortarem o céu, não fico mais feliz. Eu achei o meu medo, o meu medo, o meu medo da chuva.

Não gosto mais dela.

RSollberg
Enviado por RSollberg em 26/04/2011
Código do texto: T2931142