Permita-me também falar de bullying

Desculpe, nobre senador, mas o senhor não sabe o que é isso

Muito tem se falado em bullying ultimamente. Perdi a conta das vezes que a Ana Maria Braga tocou no assunto nos últimos dias, durante o meu café da manhã à frente da TV. Depois do assassinato dos alunos da escola de Realengo, no Rio de Janeiro, é praticamente obrigatório ter informação e opinião sobre o tema. A novidade mais recente veio do senador Roberto Requião, que após tomar o gravador das mãos de um jornalista, argumentou que estaria sofrendo bullying da imprensa. Espero sinceramente que o nobre senador, quando se tornar adulto, não resolva disparar seu trauma por aí, como fez o matador Wellington Menezes de Oliveira, que pretendeu se vingar da sociedade assassinando crianças dentro de uma escola. Nem quero imaginar uma vingancinha do senhor senador. Ui!

O assunto ficou tão popular, que por mais que tenha passado a vida inteira guardando-o dentro de uma gaveta mental, ele veio à tona novamente. E cá estou, a contar para você, caro leitor, minha experiência com o bullying. Numa tentativa de escapar das lembranças ruins, preferi esquecer para não ter que pensar, não avaliar, não permitir que possíveis traumas pudessem se transformar em algo que me prejudicasse. Ou, simplesmente para não sofrer, não deixar doer (Diz meu marido que tenho a capacidade de desenvolver antidepressivos naturais). Mas, já que resolvi colocar tudo isso pra fora, devo começar confessando que Ester jamais foi esquecida.

Ela morava atrás da escola, mas não estudava. Andava pelas proximidades, sempre acompanhada de meia dúzia de garotas; algumas delas, sim, estudavam na escola. Ela as liderava. Faziam tudo o que os meninos faziam, numa época em que meninas e meninos se divertiam com programas diferentes. O grupo perambulava pelas ruas do bairro, jogava bola, atirava pedras nos outros e nas janelas dos outros, vestia-se como os garotos.

Eram violentas. Provocavam brigas por onde passavam, pelo simples prazer de brigar. E tudo isso era ensinado por ela, Ester. A menina-macho que assombrou meus dias de garota e quase moça. Que me amedrontava só por sua aparência que para mim, então com oito anos, era horripilante.

Eu me assustava com o rosto da Ester. Alguns anos antes ela sofrera uma queimadura que lhe deixou marcas por quase todo o corpo. O rosto era praticamente deformado. Tinha uma voz rouca, muito masculinizada para uma criança de 12 anos. Uma criatura monstruosa aos meus olhos. E se manteve monstruosa também em suas atitudes até o destino piedosamente afastá-la da minha vida.

Ester não me suportava e até hoje ignoro o motivo. Abordou-me a primeira vez na rua da minha casa, na companhia de sua turma inseparável. Parou-me e disse claramente que não ia com a minha cara. “Não gosto de meninas com essa carinha bonitinha de filhinha mimada e de primeira aluna da sala”. Como não reagi, ela se irritou e decretou que eu só sairia dali depois que a encarasse numa briga. Jamais toparia! Eu era muito menor que ela. Ester era grande, forte, com todas as características e habilidades de um menino. Ela não desistiu. Mesmo sem que eu quisesse briga, levei quatro bofetadas, sem reagir, cristalizada de medo. Tornei-me, então, vítima permanente dela durante muito tempo.

Andar nas ruas era um tormento. Sempre que Ester me via, me aprisionava contra um muro e me batia, sem dó, sem deixar marcas. Botava o dedo na minha cara, cuspia em mim e dizia que se eu abrisse a boca, apanharia ainda mais. Aguentava calada. Era agredida na rua e ameaçada pelas amigas dela dentro da escola. Ester me perseguia, me cercava, tornava a me ameaçar, me dava empurrões e safanões. O pavor era tanto que nunca - nunca mesmo - tive coragem de revidar as agressões e muito menos de contar a alguém da família ou à professora. Sempre boba e medrosa, quando a via na rua, de longe, tratava logo de mudar de calçada e correr, correr feito louca para chegar rápido em casa.

Demorou para que minha mãe e meus irmãos sentissem que algo não estava bem. Comecei a ficar com medo de ir à escola sozinha e pedi que me acompanhassem na ida e na volta. E a escola ficava praticamente atrás da minha casa. Na minha família ninguém entendia; minha mãe conversou com a professora e com a direção do colégio, mas ninguém sabia o que poderia estar acontecendo comigo.

Depois de muito tempo meu drama foi descoberto. Fui surpreendida pela Ester na rua, quando ia ao supermercado com minha mãe. Fiquei cristalizada de novo, sem saber o que fazer, enquanto ela se aproximava. Foi chegando perto, me olhando nos olhos, ignorando o fato de eu não estar sozinha. Minha mãe percebeu algo errado e parou. Segurou minha mão e perguntou o que estava havendo. Fiquei pálida, meus lábios arroxearam, Ester passou por mim com um esbarrão no ombro e se foi. De volta a casa, fui obrigada, finalmente, a contar o que estava acontecendo. Creio que já havia se passado mais de um ano desde a primeira vez que apanhei da Ester.

Minha mãe, claro, tentou tomar providências. Foi à escola, mas lá não se podia fazer muita coisa. Ester não estudava; só morava perto. Como vivia sozinha com a avó e esta já era bem idosa, pouco poderia ajudar. Aliás, penso que nem sabia ao certo o que a neta aprontava nas ruas. E, na verdade, naqueles dias dos anos 70 não havia o nível de informação que há hoje e famílias humildes como a minha não sabiam como resolver este tipo de problema. Anos depois, em conversas em casa, não conseguimos entender se vizinhos ou conhecidos não souberam daquelas agressões ou se não as teriam presenciado alguma vez. Se sim, por que não teriam avisado? Vai se saber.

O que fizeram meus pais e irmãos foi me proteger de todo modo. Raramente eu saía sozinha de casa. Certa vez Ester foi pega de surpresa por uma prima minha, ao tentar se aproximar de mim. Levou uns tapas, sofreu as mesmas ameaças que me fazia, e sumiu por uns tempos. Quando reapareceu, não mais chegava perto, mas o tom de ameaça permaneceu no olhar. E só fiquei livre dela porque simplesmente o tempo passou. Um longo período da infância ficou marcado pela presença, pela imagem constante daquele rosto queimado que me deixava em pânico. Ester ainda entra em meus sonhos e constantemente me volta à lembrança.

Há poucos dias voltei ao bairro onde eu morava. Pedi ao meu marido para dar a volta atrás da escola e mostrei a ele onde Ester morava. Nada está igual, claro. Mais de 30 anos me separam daquele passado. Tenho até certa curiosidade de saber qual terá sido o destino da Ester. Só me lembro que ela morava com a avó, mas não sei nada sobre o resto da família. Será que teve alguma oportunidade de mudar de vida? De estudar? Ser algo mais que aquela menina infeliz que conheci? Lembrar dela é algo que ainda me causa arrepios. Ainda o medo, raiva, pena, mágoa, uma tristeza enorme... sei lá. Só sinto que ainda Ester está lá, viva, em algum cantinho das minhas memórias.

Giovana Damaceno
Enviado por Giovana Damaceno em 29/04/2011
Código do texto: T2938423
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