Uma manhã de sol e luz

“Não há doçura na vingança por mais justa que ela possa parecer. Há, sim, um prazer mórbido em compensar o próprio sofrimento com a dor de quem lhe causou o mal”. Pouchart

O sol entrou timidamente pela fresta da janela. Tocou de modo suave o rosto feminino por sobre os lençois desfeitos na cama. Um novo dia começava. Era hora da vida explodir de contentamento, de alegria, de satisfação por estar vivo, pensou antes de levantar-se. Seu corpo nú ergeu-se como a querer expandir-se como a alegria que crescia em seu interior. Parou próximo a janela e deixou que os raios do sol que entravam no quarto tocassem sua pele aquecendo o corpo carinhosa e placidamente. Virou a cabeça e sorriu ao ver que a mulher deitada na cama ainda dormia sonos de ontem com sonhos de amanhã.

“Que a luz seja sempre o brilho que nos move no mundo”, disse para si mesmo como se rezasse uma oração de algum povo do norte europeu de antigamente. Não se preocupou em cobrir o corpo. Não precisava. Seguiu em direção a outro cômodo da casa e depois de passar pela sala e a cozinha, abriu a porta e caminhou até o canto norte da varanda onde o sol tocava sutilmente o assoalho. Olhou ao redor e gritou: “Que a alegria de viver exploda sem controle e que o mundo exploda de alegria!”. Era um brado de guerra? Não, na verdade, era o agradecimento pela noite regada a carinho e dividida com outro alguém que sabia de suas necessidades. Não as do corpo, mas aquelas que a alma esconde como segredo de padre.

E assim, em pelo e pelos cômodos da casa, percorreu os lugares antes visitados solitariamente que, por mais aconchegantes que pudessem ser, pareciam-lhe desconexos, irreais e totalmente frios, tal qual masmorra de presídio ou catacumba de cemitério. Saboreava cada passo em cada um dos cômodos, tocou alguns dos móveis que compunham os ambientes. Sentiu, pelo toque e pelo cheiro, o passado indo embora, esvaindo-se de sua vida. Era o fim do fim. Era onde tudo se desfazia, se descontruia, se anulava, para logo, logo se construir de novo, se fazer de festa, se materializar como o presente, o futuro e o que virá. Não mais seria o que foi.

Voltou ao quarto e sentou-se próximo a cama fitando o corpo de mulher que agora estava mais desnudo. Formas equilibradas, de tonalidades suaves, contornos de luxúria e cheiro de felicidade. Não que a mulher que dormia em sua cama fosse o ícone da beleza mundana, aquela beleza das topmodels, ou aquela outra das atrizes empaturradas de cremes, pós e sorrisos cinematográficos que as lentes captam depois que elas se submetem a funilaria da ilusão. Não, ali estava a mulher, não uma mulher, ou mais uma mulher. Ali, naquela cama semi despida, estava a mulher.

Entre uma mulher e a mulher vai muita diferença. Ele sabia disso. Por isso, a mulher dormia sob sua sentinela, guardada por seus olhos e acariciada com sua respiração. Sabia ele que ela era o quinto elemento da ficção, a guerreira da história em quadrinho, a mãe do programa de tevê, a companheira das horas boas e más e a mulher feita de uma costela que se deixou encantar pela serpente para dar ao homem o único momento de glória da existência masculina, quando, por poucos segundos, o homem se faz Deus, tornando-se o universo por inteiro, unindo micro e macro cosmo num único e mágico segundo eternizado pela absorção feminina no mais carinhoso de todos os abraços.

Na verdade, alí estava a guerrilheira, camponesa, manequim com que sonha todo homem.

Marcus Ottoni
Enviado por Marcus Ottoni em 01/05/2011
Código do texto: T2942047
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