A Sua Música (2) - O gosto da maçã

A Sua Música (2)

 

 

Ok, talvez não seja a sua. Não posso afirmar que seja a minha, mas gosto de ouvi-la. Os versos, com um favor enorme chamamos de versos, vão longe, chegam até Lord. Veja o que ele diz para Lord: “And you can tell everybody that this is your song”. (E você pode dizer para todo mundo que esta é a sua música). Lord deve ter ficado satisfeito. Estamos aqui para seguir o dom. Primeiro é necessário achá-lo, ou reconhecê-lo, então manuseá-lo, e manuseá-lo mesmo, pra valer, o que equivale aceitá-lo e saber de onde veio. Para onde vai são diferentes quinhentos.

 

A Celsa apareceu hoje para falar sobre o gosto da maçã, a festa de ontem e os seus heróis. A profissão dela, na minha opinião, consiste em não ficar parada. Precisamos de melodias, precisamos de uma canção para prosseguir. Ela disse que foi com sua turma da faculdade numa festa em Pirituba – melodia zero - e que todos os homens presentes dançavam ou com um com um facão nas costas, ou com um revolver. Eis o que disseram pra ela: se alguém te tirar pra dançar, você aceita. Passou a noite toda ao lado de um decano, respeitado pela comunidade, bebendo água com limão.

 

De quantos Brasis ainda precisamos?

 

Outras pessoas cantaram para Lord. George Harrison, por exemplo, talvez esta seja a sua música: My Sweet Lord. Acertei? Pessoas com sérios problemas mentais gostam de dizer que Harrison é o Beatle fracassado. Fala sério...como pode o sujeito ser um Beatle e ao mesmo tempo fracassado? Percebe, de relance, a qualidade do padrão mental de quem joga para a atmosfera uma asneira dessas? É exatamente o mesmo naipe dos que vieram ao mundo para possuir e ostentar, jamais para ajudar. George descobriu um passatempo incrível nos seus últimos 10 anos de vida terrena – passear pelo mundo com uma pequena banda fazendo apresentações privês em lugares paradisíacos. Na banda constavam figuras como Peter Frampton, Ringo às vezes aparecia, Eric Clapton idem, e mais gente fracassada. Descontando os abençoados (que possuem o DVD), internauta que se preze já foi no link do YouTube - My Sweet Lord, que exibe a homenagem feita para Harrison um ano exato após a sua morte e mostra essa canção na voz de Billy Preston (que foi se encontrar com George logo depois), e mais, pode acreditar, umas 15 pessoas no palco. Se não era a sua música, depois de assistir essa versão talvez você mude de opinião.

 

Celsa, uma amiga minha que não é boa da cabeça, ela mesma admite isso, diz que no momento seus heróis são o Waldeir e o Gustavo. Não se preocupe, eles não morreram de overdose. Celsa aparece na Lan House toda segunda, quarta e sexta trazendo as novidades do seu mundo para o mundo de quem queira comprar bolinhos caseiros e ouvir estórias. Waldeir, segundo ela, sempre quis ser músico e chegou a mandar uma gravação para um desses festivais e está esperando a resposta até hoje. Ele carrega uma mochila, trabalha o dia inteiro num pátio de manutenção de trens na casa do chapéu, fala de música nas parcas horas vagas e muito raramente admite a surdez no ouvindo esquerdo, decorrência de quase 30 anos de labuta entre graxa e o nada lírico fuzuê de engrenagens. Quatro vezes por semana ele sai do trabalho e atravessa São Paulo, uma cidade que desconhece a palavra mansidão, para ajudar nos fundos de uma igreja no Jardim Bonfiglioli. Ele está nessa fita há 15 anos. Semana passada não pode comparecer em virtude de problemas com a cachorra. A Celsa diz cachorra e não cadela. Quanto ao Gustavo, o outro herói, bem, ele descobriu, aos trinta e tantos, ser esquizofrênico. Longe de ter sido uma situação tipo apareceu uma fadinha, com uma varinha, e disse: olha, criatura, você está com um dodoizinho. Longe. Gustavo comeu o pão que aquele que detesta o Lord amassou, foram quase 20 anos de desespero para ele e familiares. Nos últimos 5 anos a coisa estabilizou, ele toma medicamentos e anda sozinho pela rua, tem dois filhos e faz artesanato. Nada demais, comenta, os medicamentos o deixam um tanto aparvalhado, ele diz que sua coordenação motora não está 100 por cento, essas coisas. Celsa se orgulha desses amigos. Antes de sair, para ir vender mais bolinhos, ela pergunta: e o que aconteceu com aquele sujeito que atropelou os ciclistas lá no sul? Impune? Vai dizer que ele não tem problemas mentais, todo mundo tem, num grau ou noutro, você não concorda?

 

Respondi-lhe estar incapacitado para discordar. Então ela me perguntou: qual é a sua música? E mais uma vez manifestou-se a incapacidade, desta feita para atinar com o devido atino.

 

Foi quando ela acertou em cheio:

 

- Está vendo? – fez ela com as mãos – vivemos a vida sem conseguir explicá-la. Ou bem é um turbilhão de “inas” cutucando nosso sistema, endorfina, cafeína, estricnina, ou são nossas lembranças que vão entulhando nosso almoxarifado, ou nossos anseios e medos, dores, confusões, como é que se explica isso para alguém? É o mesmo que querer explicar o vermelho para um cego. Ou, explicar como é o gosto da maçã para quem nunca comeu uma maçã.

 

Bem, lá vai ela, carregando sua cesta de bolinhos, indo para a próxima loja. Fiquei pensando, programa perigosíssimo esse... Que desembocou nas mais óbvia conclusão: problemas ou não, cada um tem a sua música. Mesmo sem se dar conta disso.

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 02/05/2011
Reeditado em 27/12/2021
Código do texto: T2944504
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