SOBRE VERSOS, INFÂMIA E CARLINHOS BROWN

Um dia desses saí de Goianésia para assistir a um show do cantor e compositor Zeca Baleiro, um dos melhores representantes da minha geração, segundo meu próprio palpite. A apresentação foi no teatro Rio Vermelho, em Goiânia. Como bons brasileiros, minha namorada e eu chegamos ao final do concerto. Tivemos tempo de ver Zeca cantar três músicas. Mas tivemos também acesso ao quadro “Versos Infames”, no qual o cantor maranhense faz uma eleição com a ajuda da plateia sobre alguns dos versos mais toscos da MPB. Recitados como poesia. Foram vinte minutos de Zeca Baleiro, cantando e zombando. Concluí que vinte minutos de Zeca Baleiro valem mais do que duas horas de Luan Santana.

Fomos brindados com alguns trechos pavorosos de Djavan, Zé Ramalho e Fagner. Algumas seqüências seriam capazes de ofender a criatividade de um aluno do Ensino Fundamental. Lamento não ter colaborado com o concurso improvisado que Zeca fez para coroar a mais tosca elegia musical da MPB. Mas aprendi a lição: da próxima vez irei mais cedo e preparado. De volta à Goianésia, debrucei-me sobre a obra de Carlinhos Brown e fiquei encantado com o volume de pérolas que o músico baiano tem a oferecer aos “Versos Infames”. É como extrair pérola dentro de um aquário de ostras.

Vamos aos exemplos. Na enigmática “Magamalabares”, ele ataca com os versos: “Magamalabares/Acqua Marã/O parquinho oxáiê”. Acredito que dentro de qualquer dialeto não deve dizer coisa com coisa. Mais Carlinhos Brown: “O dedo deduz, dedo é dez se é dois/tocando essa cor desde os pés do teu chão/buscando afinar um satélite à toa”. Esta raridade poética ele entoa na sugestiva e autobiográfica “Mapa do meu nada”.

Carlinhos Brown é uma metamorfose ambulante. É uma veia criativa a jorrar versos como: “Bebeu água, não!/Tá com sede, to!/Olha, olha, olha, olha a água mineral”, na breve e repetitiva “Água Mineral”. Mas ele não se contenta e bebe em outras fontes para produzir sua estranha arte. Na canção “Frases ventias”, Carlinhos dispara: “Pelo portão que escorre a calmaria/Nos utensílios/Que a vi servir/Saladas em lavouras de agonia”.

Na mesma medida que as letras de Carlinhos Brown são um desafio à arte, imagino que seu cérebro é um desafio à ciência. Considera-se um gênio da MPB, um ultrasuperhiper letrista pós-futurista. Uma espécie de Caetano Veloso ainda não fabricado. Gaba-se de ludibriar a nossa reles compreensão estética. Pisa em um terreno ainda não explorado por nossa imaginação. Gaba-se por assassinar com requintes de crueldade a nossa simplória ideia de que uma letra de música deve nos dizer alguma coisa. Por mais banal que seja.

No próximo show de Zeca Baleiro não terá para ninguém. Serei o grande campeão quando recitar qualquer verso de Carlinhos Brown. Dentro da vastidão da língua portuguesa ou de qualquer língua africana, Carlinhos é imbatível, um mestre em confundir. Tentei imaginar Carlinhos em seu momento de criação, com lápis, papel e violão. Confesso que o máximo que consegui foi visualizar uma sopa de letrinhas sendo batida dentro de um liquidificador.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 03/05/2011
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T2947489