UM DIA DE CÃO

Sexta-feira 13, acordei lembrando que a última coisa guardada na memória, antes de cair no sono, foi à decisão de ir ao mercado de São Sebastião, que fica localizado ao lado da Praça Paula Pessoa, na cidade que resido, Fortaleza. A necessidade de comprar frutas e alguns produtos mais especiais, para providenciar alguns petiscos. A sequência é aquela conhecida por qualquer civilizado com alguns recursos básicos de infraestrutura funcionando na casa: um bom banho, escovação de dentes e todo o restante de higiene pessoal... Mas, cadê a bicicleta, ou como dizem os jovens; a bike? Esta coisa de nova geração, filhos... A bicicleta não estava na garagem, então o moleque de vinte anos se mandou e me deixou de cambão... Uma xícara de café, com um pedacinho de pão com ricota e fui...

Parada de ônibus, aqui começa a aventura, espero que o leitor me tenha paciência, não sei se é desabafo ou se nos vale a lição para melhor sobreviver na selva de pedras que se vive: estando na parada estratégica onde linhas de ônibus urbanos fazem conexão, quando um ônibus da linha que me interessava estacionou. Já havia uma fila para subir e no interior do ônibus quase todos os bancos já estavam ocupados por passageiros que vinham do “Campus Universitários”. Os estudantes, que esperavam a condução naquele ponto estavam folgados, na boa vida, conversando, chacoalhando. E quando o motorista abriu a porta para a fila de espera ter acesso, eles os estudantes ali em prosa, moças e rapazes do ensino médio arremessaram suas mochilas pelas janelas, fazendo as mesmas ocupar os bancos que ainda estavam vazios, então, eu calmamente subi, paguei a passagem e passei a catraca. A minha frente um senhor de meia idade aproximou-se de um banco, em que havia em cada assento uma mochila, podia-se notar, que eram possivelmente de um casal as mesmas, a que estava no assento ao lado da janela trazia detalhes bem femininos a do corredor detalhes bem característicos de um garoto, então o cidadão encostou-se ao banco, retirou as mochilas, soltou-as no corredor do ônibus, sentou-se no assento que todos nós fazemos preferência, o da janela e olhou para mim fez um sinal e surpreendentemente disse:

“Sente-se o banco está vazio.”

Minha nossa, mexeu com minha timidez, em um ônibus com uma lotação já passando do limite, sabia que estava sendo notadamente observado, mas eu não podia negar fogo para uma atitude tão responsável como tal a deste cidadão. Cumprimentei-o com um sorriso de sinal verde a sua atitude, mas calado sentei calado fiquei. Logo em seguida, Um casal de jovens se aproximou do banco que estávamos, e a atitude de reivindicação do lugar marcado foi feita pela mocinha de nariz empinado. A cara metade, suponho, ficou com aquela expressão de: "É isso aí, está pensando o que velhote?" Bem vejamos o desfecho. A moça, não sei se posso dizer a atrevida, permitam-me, foi muita arrogância espontânea, ou melhor, arrogância cultural, ao informar que todo dia eles e mais seus colegas faziam aquilo e que era legal, e disse:

“Não está vendo, que estávamos aqui? Chegamos primeiro e nossas coisas estavam marcando os lugares”.

Calmamente aquele cidadão fitou-os olhou nos olhos de cada um e respondeu:

“Bem, fiquei na fila paguei minha passagem e vi que os assentos tinham objetos, no entanto se tivessem jogado pela janela do ônibus as bundas de vocês dois, vá lá que seja... Furões, talvez desse para encarar, mas desta forma, vá se criar menina com seu coleguinha aí.”

Verdade, todos que observavam o episódio, nem um só deixou de soltar uma boa gargalhada, até o motorista.

Rodado vinte minutos, tocaram o sinal para descer, e a tropa toda foi descendo, protestando com palavrões, gestos obscenos e cantando um grito de tribo:

“Uh é o atrevido!”

Contei um a um, eram quinze.

Rodado mais alguns minutos, sobe uma senhora com uma criancinha de três a quatro anos no colo, assento do corredor do banco a minha esquerda já desocupado, o único. As duas sentaram, a provável mãe com a criança no colo que chorava, outra mulher provavelmente uma babá, acompanhou as duas, encostando-se ao banco onde as duas sentaram-se, a senhora tenta conter o desconsolo da criança e fala alguma coisa bem próxima ao ouvido da mesma, que continuava chorando. Ao lado das duas estava sentado um senhor de idade avançada e barbudo, e que tenta descontrair a criança lhe acariciando e perguntado sutilmente:

“Por que está chorando?”

“Porque ela disse se eu não parasse de chorar o “babau... O senhor vai me comer?”

“Ah é, pois não chore mais menininha, o babau quer bem você, eu vou então é comer é "ela" para deixar de ser ameaçadora".

Incrível a menina parou de chorar. A moça que as acompanhava ria como se quisesse dizer: “Bem feito.”

Ônibus rodando mais dez minutos, tumulto na cozinha do ônibus, olhei tangencialmente, mas deu para entender, próximo a catraca um cidadão solicitou ao trocador que abrisse a porta traseira, que havia esquecido sua carteira, e precisava voltar imediatamente ao local de onde subira, inútil o condutor estava irredutível, e já em parceria com o motorista pelo retrovisor os dois trocaram a comunicação, cadeado fechado. Os passageiros na proximidade da cozinha do coletivo, ali próximos a catraca não se sensibilizaram pela clemência do cidadão, que disse:

“Alguém me ajude.”

Era cobrado o espírito de cooperação, lembrei do senhor que deu uma lição de bons costumes na menina atrevida, bancando a oportunista na marcação de lugar no coletivo, do homem de idade que alertara a mãe de uma criança que é preciso modos e discrição para se criar um filho... Não podia ficar indiferente, Chegara minha vez, vencendo novamente a timidez levantei-me sai pedindo licença e esbarrei na catraca, ao levantar a vista, notei o cidadão de uns vinte e poucos anos, empalidecido numa expressão de humilhação, o suor descendo o rosto, não sei se era um suor de defesa do organismo, pela situação vexatória ou simplesmente calor do tempo quente, observei que trajava uma roupa simples, surrada, porém limpa, suas sandálias já com as borrachas bastante desgastadas, muito rodadas...

“Ok trocador, eu pago a passagem dele”. O homem me agradeceu com meio sorriso, baixou a cabeça deu sinal e foi descendo, ouvi um grito sarcástico ecoando no coletivo:

“Desce xexeiro.”

Retornei à procura de meu lugar, evidente já estava ocupado por um rapazola, com fone de ouvido curtindo um som, com o semblante de quem diz:

“Quem vai ao ar perde o lugar.”

As pernas abertas fazendo com que a moça sentada ao seu lado, ficasse na defensiva, encolhida. Ainda assim, sua perna direita tocando a perna esquerda dela, pois o velhote surpreendente já havia descido.

Ônibus rodando mais de meia hora de percurso, rádio ligado, música de forró nos alto-falantes do coletivo, tudo parecia tranquilo quando de repente uma senhora alardeia: “pegaram minha carteira, deram um corte na bolsa, a carteira estava dentro” “O terceiro distrito está logo ali a frente, motorista fecha as portas e toca para lá" Disse o trocador. Pela janela percebia-se que em frente ao terceiro distrito havia uma viatura do “RAIO”, os passageiros reclamavam do transtorno ao motorista, que já mantinha as portas fechadas sem acesso para subir nem para descer. A cidadã roubada dizia em alto tom, “o dinheiro não me interessa tanto, mas meus documentos são mais importantes, Deus que me livre de ter que enfrentar filas para tirar segunda via, todavia já que estamos indo ao terceiro distrito faço logo o B O. O motorista conduzia lentamente o veículo adentrando ao acostamento da via para sinalizar entrada ao terceiro distrito, quando o trocador falou:

“Senhora aquela carteira ali no piso próximo ao banco dos deficientes não é a sua?"

A senhora já se mostrando nervosa saiu empurrando um e outro até ter acesso à carteira. Apanhou-a conferiu e retorquiu em direção ao trocador:

“É a minha sim, os documentos estão todos, a merreca do dinheiro... É claro levaram.

“Motorista toca em frente a cidadã dispensou a revista” disse o trocador.

Ônibus rodando a quarenta minutos, chegou minha vez de descer. Dei sinal, antes de deixar o cambão, ainda deu para abstrair, desta vez no rádio a canção de Djavan - outono, me encheu de poesia. Fiquei pensando, como será por ai afora, em Belém, em Porto Alegre, em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro, em São Paulo... Em Brasília nossa capital, como anda a cidadania? “Há há há , a fila anda e o cambão também.”

Cambão - gíria para designar ônibus

Xexeiro - que passa calote

Omar Botelho
Enviado por Omar Botelho em 05/05/2011
Reeditado em 09/05/2015
Código do texto: T2949994
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