NA ONDA DO RÁDIO

Por muito tempo o Flamengo não aparecia para mim nas cores rubro-negras. Durante parte da minha infância, o Flamengo era fruto da minha imaginação. Os jogadores não tinham rostos definidos, não eram negros, brancos ou pardos. Todos os chutes a gol pareciam perigosos demais. Respirar num momento desses seria como uma blasfêmia. Aprendi a amar o futebol pelas ondas do rádio. Ao mesmo tempo em que torcia fanaticamente pelo meu time, tinha que usar a imaginação para que o gol de placa fizesse algum sentido para mim. Eu tinha que recriar todo o cenário, os jogadores, a bola e dar vida ao lance. O rádio permitia que eu fosse um menino a brincar com a emoção, fazendo do meu modo.

As rádios Globo, Tupi e Nacional, do Rio, eram o meu contato com o mundo exterior, com o mundo da imaginação, com a magia. Não tínhamos televisão em casa. O que eu perdia não tendo as imagens aos meus olhos, ganhava criando um mundo que era todo meu, segundo a emoção que o rádio me ditava.

Transporto-me ao final dos anos 80. Eu, menino, de meus 8, 9 anos, ia passar as férias escolares em uma fazenda onde moravam tios e primas. Lá, entre brincadeiras de futebol com meu irmão, usando as laranjas do pomar da minha tia e as aventuras pela serra em companhia dos dois cães da fazenda, havia algo que me encantava profundamente: o rádio do meu tio, que era ligado à noite. Naquela época, em casa que não tinha televisão o rádio era o portal mágico para um mundo infinitamente mais interessante e cheio de possibilidades.

Era lá, apenas lá, que ouvíamos pela rádio Globo, o programa humorístico “A Turma da Maré Mansa”, que era apresentado por Antônio Luiz e contava no seu quadro com personagens que viriam a brilhar na televisão como a Velha Surda, Saraiva, Jacinto. Meus olhos de menino brilhavam quando ouvia as histórias impagáveis do Jacinto, que falava tremendo a voz e sempre se dava mal na sua empreitada de arrumar uma “marida”. Saraiva ficava nervoso e respondia com grosseria às perguntas óbvias: “pergunta idiota, tolerância zero”, dizia. Já a Velha Surda confundia as palavras que Apolônio lhe falava e acaba criando uma tremenda saia-justa.

Minha infância foi marcada pelo rádio. O que não me foi permitido ver não me foi impedido de imaginar. Se me foi castrada a visão dos olhos, sobrou-me a visão da criatividade, do pensamento. Sempre gostei de criar meu próprio teatro, meu mundo interno. Não poderia ter aliado mais fiel do que o rádio. Minha avó tinha um belo rádio, no qual ela ouvia as notícias locais e programas religiosos. Ela odiava futebol, segundo sua definição, uma obra do demônio. Mas às vezes permitia que, baixinho, eu ouvisse os jogos do Flamengo. Sentia-me como um garoto que recebe uma licença para encontrar seu amor secreto debaixo de um pé de goiaba. Mas como era zelosa com suas posses, vovó decidiu que o rádio dela era sagrado. Comprou um para mim. Até hoje foi um dos melhores presentes que já ganhei na vida. Como o Flamengo jogava bonito naquele rádio!

Já homem, o rádio decidiu entrar na minha vida de novo. Desta vez ele não era mais o duende que aparecia para trazer magia à minha vida. Era o meu ganha-pão, o meu ofício, de onde extraía meu grão de sobrevivência. Por nove anos, o rádio foi minha ocupação, minha vida profissional. Mas para meu coração a imagem mais forte, mais eterna sempre será a do menino, de olhos esbugalhados, diante do aparelho, ouvindo os gols do Flamengo e as peripécias do humor brasileiro. Ali eu não era apenas um menino. Era um ser encantado que havia se apaixonado por um mundo novo, um mundo que eu não sabia que existia.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 05/05/2011
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T2951708