O VELHO CASARÃO

Lêda Torre

1918. Limiar do século XX, quem diria! Naquele velho casarão que um dia fora hotel, pelo estilo e dimensão, seu piso, sua estrutura, o padrão, enfim este patrimônio arquitetônico e histórico da cidade servirá sempre de referência para a história do lugar. Segundo alguns mais velhos ainda vivos, este lugar tem muita história ali embutidas; esta crônica é para falar um pouco da minha infância e de meus sete irmãos.

No velho casarão, foi-se o tempo! Quantas saudades!...Ali foi um dia o lugar que abrigava nossos pequenos projetos, nossos sonhos, nossos ensinamentos, nossas brincadeiras de criança, nossas conversas inocentes, sem nenhuma má intenção. Vivíamos no mundinho do faz-de-conta, era gostoso! E tenho certeza de que todos nós sentimos as mesmas saudades e lembranças, vivemos quase as mesmas situações, mudávamos apenas de personagens, de cenários, de eventos; cada um tinha a sua vez, o seu papel no teatro da vida cotidiana de uma cidadezinha do interior nordestino.

Lembro-me muito bem quando uma de minhas irmãs, a caçula nasceu em 1969. Claudinha. Aquele fato me marcou na minha infância. Nascera em casa. Casarão de estilo colonial, remanescente arquitetura, de uma cultura escravocrata do século anterior, final de Império, era republicana sim, cujos resquícios daquela escravidão ainda são presentes até hoje, poucos mas ainda existentes...casarão mandado construir, por senhores bem financeiramente, mandões, autoritários, pois para fazer um casarão daquele porte, naquela época, era muito poder aquisitivo e audácia.

Sua base pedra e madeira, seus paredões de adobe de barro duro, num retângulo de quase uns trinta kilos, podem crê. As janelas e portas são enormes, estão lá pra se ver, imbatíveis ante as intempéries dos tempos. Firmes como se nunca mais ventara forte, nem chovera torrencialmente. Cada telha, meu Deus! Que absurdo de grande! Porém, para maior segurança minha mãe tem trocado aos poucos as ripas, os caibros, algumas telhas por outras mais modernas e mais leves. Só que nos paredões não dar pra mexer. Sua altura transcende à altura padrão de hoje, é exagerada para os padrões de hoje, porém, era normal para aquele tempo.

Vimos naquela casa, dentro da minha memória, a nossa infância. Os flashes são muitos na nossa mente. De vez em quando se passam cenas tão vivas, umas engraçadas, outras hilárias...outras tão bobas...

Ali brotava alegria de oito crianças da nossa família, como também abundava o amor de meus pais, unidos e apaixonados, como nunca vira antes na minha vida. Ali imperava o temor ao Deus único e altíssimo, sempre aprendera que só há um Deus e que ELE tem todo poder. A harmonia tomava conta do nosso lar e contagiava por toda parte; o ambiente onde vivemos muitos anos, era salutar, graças a Deus. Brigar como hoje? Nem pensar! Nunca!!! Ah que saudades tenho de minha infância!! Cresci vivendo o amor de meus pais, e hoje estranho muito a falta de amor entre as famílias.

Embora tenha perdido meu pai repentinamente de um "derrame cerebral", no auge de seus 43 anos de idade, ele era tão jovem, tão bom, marido excepcional, pai ímpar, amigo inconteste, nosso pai Fernando, foi o melhor pai e esposo do mundo. Amigo de todo mundo naquela cidade de Colinas; um profissional da costura, de mão cheia, costurava para pessoas da alta sociedade, até daqui de São Luis, como fora seu grande amigo, o Dr. Orleans médico bem conceituado na terra e chegou até a ser Secretário de Saúde do nosso estado. Mas somente meu pai era seu alfaiate preferido, roupas que só ele fazia.

Com sua precoce partida, perdemos um exemplo, um grande líder, uma referência, uma fonte de saber, de dons, tudo nos ensinava e ali aprendíamos muito. Apesar de parcos estudos, amava a leitura; lia toda revista que circulava naquela época, como as revistas realidade, a manchete, a Cruzeiro, entre outras. Ele tinha pouca formação escolar, mas muitas leituras, entretanto, amava tanto ler que gostava de comprar livros, quando ali passavam aqueles vendedores de livro de antigamente.

Realmente, um grande pai. Um homem respeitado, honesto; mas que dava vida àquele casarão. Uma grande perda, uma grande paixão. Eternas saudades. Até hoje sentimos isso.

Foi no velho casarão onde aprendi as primeiras letras, eu e meus irmãos. A paixão pela leitura veio de meus pais que sempre gostaram de ler. Meus avós eram exímios contadores de história. Brincar por todo o velho casarão, era a palavra de ordem! Para dona Creuza minha mãe, viúva aos 31 anos, no mais alto da beleza de uma mulher, simples, determinada, guerreira, naquele momento incomparável de dor profunda da perda do amado, poderosa e soberanamente segurou as pontas, aguentou firme aquela responsabilidade, ficou mais madura, devido àquela missão inesperada e colocada tão de repente em suas hábeis mãos.

Resolveu estudar. Aquele ar de tristeza naquele casarão era inadmissível! Foi no velho casarão que durante muitas noites insones, trabalhou duro para dar conta do recado. E venceu. Formou todo mundo. Os oito filhos hoje tem curso superior, façanha muito difícil hoje em dia, infelizmente. Dona Creuza a senhora minha mãe, até hoje com seus 75 anos, continua linda, firme, de palavras fortes e como uma mãe sempre zelosa está pronta pra nos aconselhar, tanto aos filhos, como aos netos e bisnetos. Nossa grande referência de pessoa. O exemplo vivo em tudo. Tudo aconteceu ali, naquele lócus.

O velho casarão além de nos abrigar das intempéries temporais e atemporais, foi testemunha também de grandes momentos alegres e tristes. Lá perdemos pessoas muito amadas, como nossos avós, tios, sobrinho, e recentemente nosso irmão caçula, Ferdinã Tôrres, que fatalmente nos deixou em 2012. Mas ainda é lá que assim mesmo, nos reerguemos ante as controvérsias e durezas da vida. A sorte é que temos Deus para nos sustentar incondicionalmente, para que não venhamos a sucumbir.

Pois é, velho casarão, patrimônio da cidade, onde apesar de perder seu grande amor pra sempre, mesmo sabendo que jamais voltaria, acalentou-a em seu abrigo, a sua dor inconteste! O jeito foi a tudo reaprender a viver sem seu grande amor, a ir às lutas...e hoje, está lá firme e forte, quase secular, está passando por algumas pequenas reformas internas e logo exteriores, mas ali, histórico pra todos verem.

___São Luis, 12/05/2011________

Lêda Torre
Enviado por Lêda Torre em 12/05/2011
Reeditado em 23/06/2021
Código do texto: T2964596
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