Nunca havia visto alguém morrer

Ouvi esta frase quando zapeava no controle remoto e passei rapidamente por um diálogo entre as personagens de Nicole Kidman e George Clooney. Não me interessei pelo filme e continuei procurando outra coisa. Mas a frase não me saiu da cabeça. Não saiu porque vivi esta experiência aos 16 anos e posso afirmar que é, sim, inesquecível. Não só por ter sido a primeira vez, mas ver alguém morrer é algo único, pra não dizer estranho.

Fazia o último ano do curso técnico em enfermagem e minha estreia no estágio seria na UTI. Nunca tive problemas de sensibilidade ao ver sangue ou nojo de vômitos e outras excreções. Considerava-me preparada para encarar as práticas da assistência a pacientes de todo tipo no dia a dia, após dois anos de muita teoria absorvida na sala de aula, principalmente as ministradas pela rígida e competentíssima professora Idalina.

E eis que no dia em que começaria a provar meus conhecimentos, entro na UTI super animada, com meu uniforme impecável, cabelos presos num rabo de cavalo, e sou recebida pela enfermeira chefe do setor já me estendendo a mão me pedindo para pegar algo em cima de um dos carrinhos de reanimação. E me dei conta de que toda a equipe estava em torno de um leito, onde uma paciente sofrera parada cardiorrespiratória. Tudo o que aprendi na teoria sobre aquele momento foi em vão. Pelo menos em parte. Diante do desespero que é tentar reanimar alguém morrendo, não consegui prestar muito a atenção às técnicas utilizadas; somente assisti, assustada, à correria dos profissionais, que se entendiam praticamente por pensamento.

Havia cerca de meia dúzia de pessoas em volta do leito, entre médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem. E eu na fila de trás, olhando. Com exceção da ajuda que me foi solicitada logo que cheguei, ninguém notou minha presença. Minha apresentação à chefe ficaria pra depois. A paciente era uma mulata grande (quando estamos deitados em decúbito dorsal ficamos mais espalhados na cama e parecemos mais largos), tinha pés e mãos inchados e estava toda conectada em aparelhos. Também não esqueço de ter visto alguém tirar o esmalte vermelho dela com éter.

Foram realizados todos os procedimentos de reanimação: massagem cardíaca, desfribilação elétrica, injeção de adrenalina direto no coração com uma agulha enorme. Nada. A mulher não voltou. Já estava parada há muito tempo e o médico não tinha mais o que fazer, a não ser olhar o relógio para determinar o horário do óbito. E eu, quando me dei conta, estava acordando de um desmaio, alguns minutos depois, na sala de descanso da enfermagem.

Até hoje não sei ao certo porque resolvi fazer este curso; talvez por algum tipo de pressão externa, afinal, muitos jovens passam por situação semelhante. Digo isso porque nunca tive uma relação muito amistosa com o tema morte. E a partir do momento em que me dispus a trabalhar em hospital, lá estava eu, bem pertinho dela o tempo todo. Atuei relativamente pouco na profissão, mas pude, digamos, participar da morte de um bocado de gente neste pouco tempo. E, como disse lá no começo deste papo, é sempre desagradável, triste, frustrante para quem está ali ao lado tentando impedir a perda e, claro, estranho. Há alguns minutos a pessoa estava; de repente, não está mais.

Fiz amizade com uma paciente de UTI, na qual eu transfundia sangue. Em todas as vezes que subi ao setor para fazer o procedimento, conversamos um bocado. Eu a achava a cara da atriz Laura Cardoso e cheguei a dizer isso a ela. Tínhamos a orientação de não nos aproximar muito, não nos deixar envolver ou emocionar, mas nunca consegui obedecer a estas regras; pra mim não dá. Como espetar uma agulha numa paciente, colocar sangue pra correr em sua veia, e não bater um papo, não ouvi-la? Talvez por me dispor a oferecer atenção e carinho, recebia o mesmo em troca e creio que poucas vezes na vida experimentei algo tão gratificante.

E esta paciente foi uma das que vi morrer. Ela não respondeu ao tratamento; foi definhando aos poucos, sendo tomada dia a dia pela doença que a levou devagarinho. Jamais imaginei que um dia seria capaz, mas não só assisti sua partida, como ajudei em toda a preparação do corpo. Papo chato esse, né? São lembranças. E nem sempre temos lembranças boas, tampouco sabemos onde fica o botão da positividade do pensamento. Uma simples frase ouvida de passagem num canal que nem me lembro, de um filme que não conheço, me levou a esta viagem desagradável, mas muito reflexiva.

Giovana Damaceno
Enviado por Giovana Damaceno em 12/05/2011
Código do texto: T2965361
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