Lembranças macabras

Em passado recente, as dificuldades financeiras do Brasil levaram muita gente ao desespero. Ainda hoje é assim. Um pouco melhor, é verdade, graças aos avanços econômicos, responsáveis pelo surgimento dos chamados emergentes, integrantes da nova classe média que surfa nas ondas do desenvolvimento.

Egressos da base da pirâmide social, com ganhos financeiros magérrimos, abaixo de dois mil reais por mês, os recém-saídos da pobreza engordam as estatistas grandiloquentes desse governo que está aí, e ainda fazem a alegria de políticos corruptos.

Antigamente, viajava-se a Miami, nos Estados Unidos, para efetuar compras de produtos eletrônicos, principalmente computadores e telefones celulares. Havia quem fizesse várias viagens por mês. O contrabando era generalizado e favorecido por funcionários desonestos do governo, que faziam vista grossa para o procedimento ilegal. Infelizmente, esse era o jeito de minimizar os efeitos danosos da reserva de mercado, instituída por falsa defesa da indústria nacional, obsoleta e oportunista.

Foi nessa época que a família Moreira fincou raízes em Miami, cidade situada no sul do estado da Flórida, cujo nome é devido ao navegador Juan Ponce de León, desbravador da região, por volta de 1512. A denominação Flórida advém da expressão espanhola Pascua Florida, festividade acontecida na Espanha para comemorar a ressurreição de Cristo. A localidade é de acentuada beleza, tendo a famosa Miami Beach como destaque.

O clã Moreira é originário de Governador Valadares, em Minas Gerais. Boa parcela dos nascidos na cidade mineira reside na terra de Tio Sam. Os destemidos mineirinhos entram nos States pela fronteira mexicana, como clandestinos, burlando a vigilância da atenta polícia ianque, que os persegue inexoravelmente.

A casta valadariana transferiu-se do Brasil, integrada pelo patriarca Antônio, a esposa Emília, as cunhadas Vitória e Joana, e dois filhos menores, Carmem e Expedito, este último apelidado Zito, por ser o mais novo da prole. Ali trabalharam arduamente, fazendo faxinas em casas de ricos americanos. Alguns tinham como incumbência remunerada dar banho e maquiar cadáveres para as exéquias de nativos e de cubanos deportados do regime de Fidel Castro.

Antônio Moreira costumava enviar presentes para a parentela em Governador Valadares. Telefones, computadores, perfumes, tênis e roupas confeccionados na China e abundantemente vendidos nos Estados Unidos vinham pelos Correios. Alguns chegavam atrasados ou se extraviavam pelo caminho, em virtude da ineficiente administração de uma empresa que fora sinônimo de pontualidade e segurança.

Certa feita, chegou a Governador Valadares algo inusitado, procedente de Miami. A estranha encomenda constituía-se de um ataúde, em cujo interior repousava tranquilo defunto. Na verdade, uma defunta, que de tão volumosa exorbitava do espaço reservado à sua acomodação.

Os parentes entreolharam-se, surpresos. Alguém mais corajoso resolveu abrir o caixão. Ao fazê-lo, defrontou-se com o corpo exangue. Nas mãos frias e entrelaçadas da morta, extensa carta dava explicações.

A missiva destinava-se aos pais de Emília, e dizia:

Queridos pais, eis o corpo da tia Vitória. Enterrem-na com todas as honras, pois, ela sempre os amou. O cadáver parece obeso, por óbvias razões, como verão a seguir. No esquife, vocês encontrarão, debaixo do corpo, o seguinte: 12 latas de atum Bumble Bee, 12 frascos de condicionador St. Ives, 12 tubos de pasta de dente Crest, 12 hidratantes Victoria´s Secret, 13 perfumes Dolce & Gabbana e mais 14 da marca Armani.

Repartam os produtos com a família.

Sem brigas, entenderam?

Os tênis Reebok, novos, número 39, que a titia está calçada, são para o Fernandinho. Os pulôveres Ralph Lauren que ela veste, um é para o Roberto e o outro para o Marquinho. Quanto aos seis sutiãs Wonder Bra e às vinte calcinhas da Victoria´s Secret, usados uns sobre os outros, e, ainda, os vinte esmaltes de unhas Revlon, nas laterais do caixão, repartam entre minhas sobrinhas e primas. A titia está vestida com três calças Levis, que deverão ficar com o papai. O relógio Swatch, no braço esquerdo, também é para ele. A peruca platinada, na cabeça da tia Vitória, é para a Kátia usar no casamento dela. Tenho certeza de que ela vai abafar!

Volto a insistir: Não briguem! De jeito nenhum!

Não esqueçam de que essas lembranças foram compradas com as economias deixadas por tia Vitória. Façam uma partilha decente, conforme recomendei. Aliás, esse seria o procedimento da titia, se a morta fosse você, mamãe. Portanto, cuidado! Nada de brigas!– insisto.

O corpo não deve ser enterrado sem roupa. Nua, não! Pelo amor de Deus! Que pecado seria!

Sim, ia esquecendo: Com a morte da tia Vitória, a tia Joana ficou doente. Estejam preparados. Façam seus pedidos com moderação. Não peçam bicicleta, pois não cabe no caixão, nem desmontada.

Com todo amor e carinho da filha ausente, Carmem.

A solidariedade mineira impressiona. Se algum leitor viver circunstância parecida, quando transferir um morto para ser enterrado em outra cidade, aproveite o frete e envie os pertences do falecido – roupas, relógios, sapatos (menos a escova de dente), tudo o mais que tiver serventia para os vivos – dentro do esquife. A parentela, por certo, ao invés de chorar a sua perda, ficará radiante ao repartir seus haveres entre si.

Também não esqueça, caro leitor. Sem brigas!

Nota: carta foi adaptada de e-mail recebido de um amigo.