As águas termais de Pérgine


       Meu amore Filippo estava feliz. Os filhos tinham crescido e haviam tomado um bom rumo, tínhamos passado o Natal e o Ano Novo todos juntos, celebrando a vida e as nossas conquistas. Era dia da Epifania. Em meio às conversas com os amigos Felippo nos falou de um SPA que sua mãe frequentara quando esteve doente, há muitos anos, um pouco antes de morrer. E comentou: - O tal hotel, em Pérgine, tem uma bela cerâmica pintada na Toscana, especialmente pro SPA, com detalhes de um grande pintor, e as torneiras ricamente torneadas.
Os amigos, especialmente as minhas amigas se encheram de curiosidade.
       - Ela esteve enferma, a ponto de não sabermos mais o que fazer. – Filippo falou com saudade. A descrição que ele fazia do lugar deixou-nos maravilhados. Falou dos tratamentos de cura, das excelentes massagistas, dos médicos atenciosos e do ambiente suntuoso cheio de animosidade.
       - Que tal passarmos um dia lá naquele SPA? – sugeri.
       - É... ponderou Filippo, - vai ser bom rever aquele lugar especial.
       No domingo seguinte, tomamos a estrada que margeia o rio Brenta saindo de Bassano Del Grappa rumo norte. Filippo colocou as correntes apropriadas para a neve nas rodas do carro. Vestimos roupas pesadas prontos para o frio terrível de temperaturas negativas do início de janeiro de 2009. Caíra muita neve, mas meu amore decidira me presentear e não se importou com as previsões meteorológicas.
       - Você vai amar o SPA Perla!... Aquele lugar é joinha! – disse-me Filippo. – mio amore... vamos nos banhar naquelas tinas de ofurô a dois!... e depois... massoterapia com aquelas senhoras de mãos mágicas!...
       - Que ideia genial! –
eu estava entusiasmada.
       Num trecho da rodovia SS47, depois de Campolongo, a beleza estonteante de um trecho nos fez parar. De um lado da estrada o lago di Caldonazzo brilhava de um azul anil radiante, e do lado direito, o lago de Lévico irradiava seu azul profundo, ambos os lagos circundados por uma grossa camada de neve, puro merengue adornando a limpíssima água. Um espetáculo! Paramos num café para celebrar aquele momento e nos deliciar com tamanha perfeição da natureza.
       Alguns quilômetros à frente, numa composição única do Criador, as montanhas Dolomiti irrompiam gigantes, altíssimas, tão poderosas de causar assombro. E dizer que, lá no alto, vilas se formaram, coisa inacreditável, como Forni di Sotto e tantas outras. O secular e íngreme rochedo carecia de arbustos, era pedra pura.
       Seguimos a rodovia que subia pelas montanhas sentido oeste até alcançarmos Pérgine. Era preciso muito cuidado, pois cada vez mais a neve se avolumava nas laterais da rua, quanto mais alto a montanha mais gelo se acumulava.
       Ao subirmos a grande colina, avistamos de longe o SPA e percebemos algo estranho... todas as janelas estavam escuras. Que coisa sinistra!... O hotel ficava justo no topo duma curva de noventa graus, cujas vias eram separadas por uma fonte.
Ao chegarmos, Filippo subiu a estradinha lateral direita, cheia de gelo, cauteloso. Via-se dali um manto branco cobrindo uma grande mesa e cadeiras, ainda com pintura fresca e das quais só se via o espaldar, agrupadas e abandonadas ali debaixo de um toldo verde. – Non... non! – exclamou nervoso - Este hotel está fechado?! Não é possível!...
Estiquei meu olhar pelos quatro andares do prédio, pela abóbada cilíndrica de mármore rosa, pela porta trabalhada em lenho maciço, pelas floreiras esquecidas. Felippo parou na lateral norte do prédio, adivinhando uma avenida de ciprestes ainda baixos.
       - Compagno! Per favore, aiuto... soccorso! (por favor, socorro) – ouvimos aos gritos lá de dentro, dum homem de voz muito rouca.
Descemos do carro afundando os pés no gelo, e Filippo se dirigiu a grande porta dos fundos. Espremi meu olhar numa vidraça lateral embaçada depois de tentar clareá-la espanando as luvas no vidro. Lá dentro duas velas acesas davam sinais de vida... Filippo ia bater na porta quando um magérrimo homem surgiu.
       - Ufa! Finalmente sairemos daqui! – disse o homem, cumprimentando Filippo calorosamente. Convidou-nos para entrar. A temperatura lá dentro era tão gélida que doíam as narinas. Nenhum sinal de aquecimento, nem de energia elétrica. – Estamos virando estátuas aqui dentro. – disse uma mulher se aproximando. Meu amore e eu estávamos curiosos: - Afinal, o que aconteceu?... Os dois nos serviram um vinho tinto... e entre algumas reticências, resumiram os fatos... - Foi um grave erro de administração. - Os donos do hotel, insensatamente, torraram uma grana inimaginável... e tudo foi por água abaixo.
       - Mas,... e vocês eram empregados? – perguntei-lhes – E resolveram ficar? 
       - Não, não éramos até um mês atrás – a esposa Elsa explicou, entre um gole de vinho e outro. - Foi quando viemos vender vinhos de Breganze, e encontramos o caseiro que precisava viajar urgente. Fizemos um acordo que, em troca da hospedagem, cuidaríamos do SPA. E assim fomos ficando...
       - Sem aquecimento?!... Sem luz?! - Filippo indagou num tom apreensivo.
       - Bom... não estávamos prevendo tanto frio assim, e achávamos que era uma boa hospedagem. – foi contando a mulher. – Muito lindo aqui, vocês nem imaginam!
       Meu amore lhes contou que já conhecia o lugar e que era, de fato, deslumbrante. Contudo, estávamos assombrados com a capacidade deles de se proporem a tomar conta do lugar naquelas condições. – O problema é que o gelo congelou o radiador do meu carro... e ele não pega... – explicou-nos o senhor de bigodes largos.
Quisemos visitar o interior do SPA. Elsa pegou uma vela, e fomos lá pra dentro, sobressaltando-nos de vez em quando com as labaredas que desenhavam imagens disformes pelo caminho. – Veja que estupendo! – Filippo me apontou a grande piscina. Uma estátua imensa inspirada no “Nascimento da Vênus” de Botticelli erguia-se imponente na cabeceira da piscina oval tendo a grande concha a seus pés ladeada de pétalas de mármore colorido. Mesmo abandonada e esvaziada a sala era belíssima, com contornos dourados, e adornada com uma dúzia de anjos. Íamos seguindo pra descobrir mais tesouros do lugar, quando nos demos conta de que a neve voltara a cair. Ah!... neve, envaidecida em seu esplendor... poderosa!... caía sobre a terra languidamente... como uma farinhazinha suave saindo das mãos de anjos celestiais... das nuvens do firmamento.
       – Vamos embora!... vamos embora!... – disse Filippo, super preocupado.
       Fomos de volta pra cozinha onde André nos aguardava com a mochila na mão. Filippo ajudou a dar partida no carro e Elsa acomodou sacolas, roupas, cobertores, uma garrafa térmica, um saco de comida, e miudezas. Em poucos minutos já estávamos prontos pra partir. Rapidamente, entramos no carro com um frio glacial...e nos despedimos. Tomamos o rumo de volta... enquanto a neve nos brindava com sua beleza e perigo pela frente.
       - Que história, hem!... chegamos bem na hora!...- comentou meu amore. 
       O casal amigo tomou o rumo de Thiene,... e nós pra casa, perplexos com o fim incomum de um SPA tão lindo.



                                                                              Maróstica, 11.janeiro.2009

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        Texto publicado na Revista INSIEME  de março/2011  em português e italiano.