O Zé

Conheci o José Luís, o Zé. Faz mais de duas décadas num curso técnico na zona leste, bem ali no Belenzinho.

Meus primeiros anos de magistério foram cercados de ideologias, de compromisso e de amor pela causa operária e eu só queria saber de trabalhar com metalúrgicos, motoristas, faxineiras, cozinheiras. Jamais havia me imaginado trabalhar com público diferente desse. Nem por sonho entregar curriculum em colégio de elite! Eu tinha uma consciência clara de luta de classes como mecanismo de se quebrar a ditadura para sempre e de promover pelo menos um pouco a justiça social. Era necessária a ação e a teoria seria apenas o pano de fundo dessas transformações. E eu, cheia de privilégios, deveria estar a serviço dos pobres, habitantes das periferias. Eles mereciam conhecer um lugar ao sol e construir uma outra forma de viver. Nesse colégio conheci o Zé. De identidade paulistana inconfundível, veio de uma pobreza absurda. Eu jamais vira um rapaz tão magro. Era um espanto! O rosto mal dava conta de segurar-lhe o crânio. Numa noite de trabalho com aquele público promissor nos sonhos e nas buscas, ele me confidenciou que a pobreza era tal que ele dividia um sofá com dois irmãos para poderem dormir.

E chegou com um esforço monstruoso, inominável, ao curso de engenharia da USP, a principal universidade da América Latina. E ali, naquele colégio, era o mais conceituado professor de Física. Atravessava a cidade para chegar à USP todos os dias e, ao que parecia, mal tinha recursos para se alimentar. Á noite, lá estava ele, sempre pronto e, ao mesmo tempo, brincalhão. Como brincalhão? O Zé não aceitava que nenhum aluno dormisse durante suas explicações. Então levava um apito pendurado no pescoço e um espanador na outra mão, pois a direita carregava o seu incansável apagador. Caso algum aluno – operário cansado de tanto apertar parafuso ou mesmo algum funcionário da ELETROPAULO - sucumbisse ao cansaço, o Zé , sorrateiramente, chegava perto do infeliz e apitava estrondosamente aquele instrumento de tortura no ouvido do sujeito e ainda lhe espanava as fuças.

E ninguém brigava com o Zé.

E eu o admirava e não entendia o seu apego tão sincero e cotidiano com a religião. Ele sempre carregava uma Bíblia, mas nunca o vi fazendo alguma pregação. Nada disso! Ele apenas vivia o Evangelho, no trabalho, no compromisso com a família e com o seu público. Compromisso com a vida, atribulada e nada gentil, com pouca comida e muita esperança. Ele, tão moço que era, já havia compreendido que a Bíblia representava um verdadeiro manual de felicidade: está tudo ali, em todas as dimensões da verdade e da franqueza, do respeito e do amor, do suportar todas as dores, exercitar todas as dificuldades com toda a lucidez e que o Zé conseguiu traduzir, assimilar e respeitar visceralmente. Acredito que ele se apoiava nas Sagradas Escrituras para poder suportar uma pobreza material crônica, um esforço incomensurável em atravessar a cidade todos os dias, enfrentar um público sempre difícil, pois dar aulas é mesmo muitíssimo complicado – receber baixo salário, enfrentar um curso universitário por demais complexo e ainda sorrir. Aquele rapaz me mostrou o que é a sabedoria e a alegria de viver.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/05/2011
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