PROCISSAO DE LEMBRANÇAS - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Os sinos das igrejas badalam forte. Quanto mais perto da igreja, ouvem-se os sinos badalarem com uma intensidade e ritmos mais excitantes. Os sinos, mesmo acordando toda a natureza são como uma música suave aos meus ouvidos. Cada som, cada repique, cada eco me lembra um tempo de minha vida. Descemos em direção ao largo do Rosário e percorrendo as ruas dessa cidade, e tropeçando nestas enormes pedras das ruas, volta-me à mente meu tempo de juventude, em que eu falava sempre por último, pronto e acabou. Hoje já não me preocupo mais com as minhas palavras e com meus desejos. Apenas quero ser uma idosa comum e morrer feliz nesta terra que tanto amo. Mas mesmo assim conservo-me uma mulher respeitada.

Para cada lado que se olha vemos a torre de uma igreja. Cada uma mais bonita que a outra, e hoje, já com dificuldade para percorrer essas ruas que outrora eu corria feliz da vida, sinto pulsar forte o meu coração e pareço reviver em cada passo dessa procissão os momentos de minha vida. Nossa Senhora do Carmo vai ao meio da procissão e ladeada pelas mulheres piedosas que se vestem de carmelitas e enfeitam o cortejo. Nem precisava de enfeite, a imagem é magnífica e essa cidade é esplendidamente linda, charmosa e cada janela guarda ao menos um segredo.

Parece que vejo o sorriso de meu amado quando íamos juntos, de mãos dadas, fazendo inveja a toda essa gente da alta sociedade, que me olhava por essas ruas quando eu ainda era pobre e humilhada. Eles devem morrer de ódio de me ver aqui ainda hoje, e sozinha, mas cheia de jóias e prestígio que herdei do homem que me amou, como nunca nenhuma mulher do Tejuco foi amada. Penso até que a inveja delas é maior por isso. Eu fui amada e muitas delas não passam de uma mulher boa para casar que se pode arranjar, para engordar fortuna e não perder prestígio nessa sociedade hipócrita. Muitas nunca conheceram o amor e nem sabem o que é amar. Mais triste que eu que estou só, com minhas lembranças.

Passo pelo mercado e aqui tenho que parar de acompanhar o canto. Minha voz sempre trava neste lugar. Aqui, meu Deus, quantos escravos sofreram castigos e eu mesmo fui arrastada nesta praça por causa de um mínimo qualquer de descuido. Aqui muitos comerciantes vendiam de tudo e eram os escravos que carregavam. Essa praça não me lembra nada bom. Vamos seguindo, passando pela bela matriz e voltando para a nossa igreja do Carmo. As pedras vão trazendo à mente as conversas dos escravos carregando as luxuosas liteiras, que muitas vezes também me transportaram para todos os lados dessa cidade que hoje não vive mais os tempos de conspirações e traições em que os diamantes eram cobiçados por todos e controlados por poucos. Agora passando pela minha casa, sinto uma dor forte nas pernas. Caminhamos muito e já não tenho mais idade para essas extravagâncias. As ruas da cidade são cobertas por grandes pedras e muitos desníveis, que nos exigem esforço. Bem que minha filha queria que eu ficasse vendo a procissão da janela de casa e acompanhar apenas o pequeno trajeto daqui até a Igreja. Mas não, eu quero caminhar enquanto der conta. Faz-me bem, apesar das lembranças e da saudade. Afinal já tenho sessenta e três anos e sinto a cada dia que passa, que o ar entra com mais dificuldade dentro dos meus pulmões que já respiraram todo tipo de ar.

A procissão chega à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, entro, poderosa dentro dela e ainda convivo com olhares desconfiados da gente branca. Nesta igreja negro não entra. Mas eu entro. Muita gente quis me expulsar, tentaram em vão não mais permitir minha entrada nesta igreja depois que João se foi para Portugal. Mas respeito é bom e eu gosto. E eu sou dessa irmandade há muito tempo e essa igreja fui eu quem mandou construir. Meu contratador a fez do jeitinho que eu quis, aqui perto de minha casa. Quando abro minha janela e vejo esse magnífico templo cheio de esplendor e único no Brasil, como dizem os viajantes, sinto um enorme orgulho. As sineiras ao fundo, que dizem ser um capricho meu, são o diferencial nesta igreja tão linda.

Os sinos agora estão dobrando e repicando festivamente, enquanto as senhoras cantam seus cantos piedosos à Mãe do Carmo. Encho os olhos de lágrimas ao ver essa imagem que eu já observava ainda quando criança entrando solenemente nesta casa que construímos para a mãe do Céu. Tudo parece conspirar a seu favor. Há no céu nuvens avermelhadas pelo por do sol dançando no ar, e saudando a virgem juntamente com os sinos, a alegria do povo e a vivacidade das crianças vestidas de anjos, tão puras e tão inocentes. Entro logo em seguida e assento-me hoje, excepcionalmente no fundo. Deixo meu lugar de destaque e fico mais discretamente comigo mesma. Quero ficar aqui no fundo e contemplar cada pedacinho desse lugar, cada detalhe da pintura e dos entalhes tão bem trabalhados e que acompanhei enquanto o artista elaborava, um a um. Eu sempre vinha ver como estava ficando. E tudo esta tao belo até hoje. Enquanto ouço os cantos e os pedidos, vou fazendo minha contrição e pedindo perdão pelos meus pecados. Eu não fui uma santa. Mas também não fui a mulher cruel, que andam dizendo por aí. Amei muito, fui muito humilhada, mas vivi em paz e quis ficar em paz durante toda a minha vida.

Quando eu era escrava, tive que suportar aquele homem que abusava de mim quase todo dia. Tive meus primeiros dois filhos antes de conhecer meu amado, mas depois que ele me libertou, fui do inferno ao céu. Vivi vida de rainha, e creio que mais do que isso. Quem teve seu mar particular e seu navio para receber os convidados? Ofereci banquetes em honra aos grandes da cidade, inclusive aos que me odiavam. Acho que abusei um pouco do meu privilégio, mas não me arrependo. Já vai para quase quinze anos que ele se foi de volta para Portugal. Não voltou mais. Na verdade está aqui, dentro de mim e na minha lembrança e no rosto de cada um dos nossos filhos. Vejo-o a todo o tempo no sorriso das minhas eternas crianças.

Por um instante silencio meu pensamento e deixo-me inebriar pelo cheiro de insenso que perfume este belo templo enquanto vão chegando as carmelitas, os anjos e todo o cortejo que acompanhava a procissão. Uma alegre leveza invade minha alma e tenho dentro de mim uma boa sensação por ter possibilitado a tanta gente estar aqui tão feliz. Relembro as disputas e os insultos que muitos tiveram que engolir de mim. Eu, a senhora que manda, Francisca da Silva, mãe de quinze filhos, todos lindos, estudados e bem colocados nessa vida, sigo minha vida de rainha, não mais em um pedestal de orgulho, mas numa bela casa, de onde vejo minha vida passar e ir chegando ao ponto final. Da minha janela olho todos os dias para este templo e contemplo a torre, que de manhã oferece um brilho quando o sol se esconde atrás dela, e ao fim da tarde quando as nuvens coroam o telhado da torre, tão charmosa que me dá gosto ficar a contemplar. As pessoas beijam a santa, param-se diante dela por alguns instantes e fico imaginando quantos pedidos não fazem e quantos perdões desejam. Quantas doenças não são pedidas em cura e quantas curas são agradecidas. Também fixo meu olhar para os da Virgem e contemplo seu escapulário, como o que trago ao pescoço, como promessa de ganhar o céu se se usa com fé e pratica a devoção. Perco-me olhando seus olhos e relembrando o sofrimento que passou com seu Filho. Penso nos meus. Quantos longe, quantos cuidando de suas vidas e de meus netos, de seus negócios e de suas preocupações. Mergulhada no funda de mim mesma, só me dou conta que todos já se foram e que a noite chegou quando meu filho me põe a mão no ombro e diz: Amém, mamãe. Vamos embora, já terminei a missa.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 23/05/2011
Código do texto: T2987912
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