A surpresa da incerteza

Outro dia estava o Castelo com um livrinho de Fernando Pessoa. Ele jogou-me aquele sorrizinho irônico. Porque sabia da minha paixão pelas letras do poeta lusitano.

Neste dia estávamos indo ao Gabinete Português de Leitura, ali no Largo de São Francisco. Ficamos um pouco contemplando a face de Camões, na praça que hoje recebe seu nome. Castelo confidenciou-me que sempre teve atração pela face de Camões. Ela o remetia ao futuro. Castelo explicou que Camões sempre escreveu olhando para adiante de seu tempo. Camões desejava a glória futura de sua terra natal. O artista que esculpira aquela face do autor dos Lusíadas conhecia muito bem o coração do poeta.

Mas, como dizia, Castelo estava nas mãos com um livrinho de Fernando Pessoa e na face aquele sorriso zombeteiro que eu odiava. Odiava porque já sabia que ele queria importurnar-me com pensamentos óbvios ao meu espírito. Tinha prazer em ouvir a mesma ladainha que eu costumava defender. Eu sabia de seus planos, mas sempre cedia o que ele desejava.

- O amigo já leu alguma vez este pequeno pensamento de Pessoa? Dizia a velha raposa da Praia Grande.

- Já li alguma coisa de Pessoa, mas o que o amigo tem aí de tão importante?

- Bem, deixa-me ler isto aqui pra você, antes de entrarmos no Gabinete. Até por que lá não poderemos conversar em voz alta, apenas por gestos. Bem, preste atenção: Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores, que a vitória no meio dos desertos, cheia da cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada. Estou lendo exatamente como está escrito aqui no livrinho, não pense corrigir gramaticalmente o poeta português para não cair em pecado.

Depois disso, Castelo soltou uma gargalhada estrondorosa que deixou-me a mim e a face de Camões enrubescidos. Não suportava sua ironia. Acho que nem o velho filósofo de Atenas suportaria. Castelo sabia ser irônico! Ao mesmo tempo, aquelas letras fuzilaram-me o coração, não só o coração, mas as entranhas por completo. E Castelo ria como uma criança, pois sempre ouvira-me palestrar sobre tal idéia.

Ele acrescentava:

- Ei, idiota, agora não está mais sozinho no mundo! hahahaha!

Não aguentei e cai também a rir. Ficamos parados nas escadas do Gabinete até o riso estar sobre controle. Num canto ali próximo tinha um velho mendigo que também começara a rir. O velho andarilho das ruas centenárias de Pereira Passos chegou até nós, ainda sorrindo, disse-nos:

- Ajuda o velhinho, vai! Dá um real pra eu tomá café!

O Castelo agora ria dobrado, aquele velho conseguia ser mais irônico do que ele. E pela primeira vez vi Castelo tirar do bolso alguns trocados e colocá-los nas mãos de linhas longas e grossas daquele velho andarilho amigo dos pombos do Largo de São Francisco. O velho, sorrindo ainda, agradeceu e seguiu sua procissão rotineira.

No fim daquela tarde despedi-me do Castelo na Praça XV. Ele pegou o catamarã e seguiu para Terra de Araribóia. Pude então desfrutar de minha companhia. De imediato as letras de Pessoa na voz microfônica de Castelo ressoava em minha mente. Como podia comungar de um pensamento em seu todo? Aquelas poucas letras resumem toda a minha vida. Sim, sem dúvida, prefiro a derrota com o conhecimento da beleza do que é viver intensamente. Prefiro perder-me num caminho sem destino certo, mas que proporcione-me as delícias que só podem advir do risco, do inexato, do incerto. Prefiro a liberdade da não-rotina, a liberdade do não saber o "que vem por aí". Renego junto com o poeta a vitória sem sabor, a vitória programada, a vitória no deserto, a vitória nula e anuladora.

Ao voltar para casa, passei na bela Travessa do Beco da Ouvidor e pedi ao Silva e Silva, grande gerente da livraria, um livro de Fernando Pessoa que falasse sobre coisas belas que só são encontradas na incerteza. Ele não conhecia, mas recomendou-me um livrinho de Nietzsche, onde o filósofo dizia que tem coisas que só são encontradas quando paramos de procurá-las. Bem, não era esse. Resolvi então continuar minha caminhada até em casa, na antiga Matacavalos e deixei a incerteza levar-me em suas delícias surpresas. A incerteza levou-me até à rua São José e lá encontrei um velho conhecido livreiro, o Cézar. Passei os olhos em alguns livros e lá recolhido entre Goethe e Dostoiévski, vi um livrinho de poesias e meditações. Puxei o livrinho e sorri quando li o nome do autor.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 23/11/2006
Código do texto: T299105
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