Na verdade, sobre tão pouco

Tenho gasto menos tempo do que gostaria com observações. Ultimamente – e não me conforta esta confissão – tenho perdido bons momentos de contemplação do outro. Ontem, não sei se estar à flor da pele explica, percebi-me olhando de novo para fora.

Na primeira observação mais detida, encostado na pilastra de um loja de sucos, vi mãe e filha. As duas iam quase que no mesmo passo, e nem poderia ser diferente porque a mãe arrastava sua cria no meio dos paralelepípedos do centro do Rio. A menina, quase em convulsões, chorava estridentemente e reagia, com o braço rígido, aos solavancos com os quais passeava pelo centro da cidade. Eu quero, mãe. Eu quero, mãe. Em alguns momentos os joelhos dobravam e a ponta do pequenino tênis friccionava contra as pedras do chão. Era choro profundo, um “eu quero” sofrido, numa cena que durou fragmentos de tempo. Olhou-me de passagem, quero dizer, a menina olhou em meus olhos. Tinha olhos doídos.

- Senhor, seu empadão.

Ao meu lado, dentro da loja, um senhor de idade avançada, terno de linho amassado, gravata na altura do umbigo, pegava um prato de arroz com feijão e outro, menor, com um empadão dentro de uma forma de alumínio. Olhou-me nos olhos, como que pedindo licença, e sentou-se numa mesa quase bancada. Sentou-se naquelas cadeiras altas, acomodando-se com enorme dificuldade. Uma garfada no prato – arroz e feijão já misturados -, outra no empadão de camarão. O velho tinha semblante triste e usava aliança na mão direita, o que me causou alguma comoção e preguiçosa curiosidade. A menina ofereceu-lhe um suco, um mate da casa, mas ele fez que não com a cabeça. Senti vontade de sentar ao seu lado, mesmo considerando a mesa estreita. Prossegui de pé, com as costas no granito da pilastra. E então ele engasgou. Um grão de arroz, deve ter sido. E tossiu. Tossiu várias vezes. E quando o grão pareceu ter saído, olhei seus olhos e eles estavam com lágrimas. Uma escorreu pelo rosto enquanto ele se recompunha com dignidade. Fiquei com pena do velho. Não olhou-me nos olhos, mas seu olhar era de desapego, de resignação.

- Me dá um suco de laranja com cenoura?

Encostei no balcão esperando meu pedido. Dava para ver o homem através da pequena abertura na parede da loja, a abertura que faz com que ele passe para o balcão os pedidos que são feitos à cozinha. Vi quando ele pegou a cenoura, já descascada. Cortou três pedaços, três nacos, e acrescentou à laranja, já em forma de suco. O barulho do liquidificador indicava que ele teria alguns segundos de repouso na lida diária com sucos e sanduíches. Vi quando fechou os olhos e suspirou. Também vi quando desligou a máquina e serviu meu suco num copo de vidro. Pedi gelo. E o adoçante. Ele, ainda dava para ver, já fazia alguma outra coisa naquele pedacinho de loja no qual trabalha. Tinha o olhar dos que não acreditam. Vi quando me olhou. Sobrancelhas cerradas. Olhos castanhos. Olhar incrédulo.

Para o escritório apenas alguns metros. No caminho, um grupo grande de turistas. Todos brancos, transparentes, todos de bonés e máquinas fotográficas. Falavam alemão. Não sei falar alemão, mas sei quando estão falando alemão. O guia era nosso, mulato, quase negro. E tinha um jeito bem simpático. Acho que estava conduzindo todo mundo para a Confeitaria Colombo. Não entendo o quê, exatamente, deve agradar esse pessoal na Confeitaria Colombo. Olhavam, todos, para o alto, para a arquitetura dos prédios. Olhares que nada diziam.

Deixei-os para trás. Quase entrando no prédio, bateram com um pedaço de madeira em minha perna. Alguns bombons caíram na calçada de pedras portuguesas. Seguiram-se gritos, silvos, um pequeno tumulto. Em seguida, outro rapaz correndo com muita vontade, agarrando-se a bolsas e cintos de couro dentro de uma espécie de lona azulada. Mais gritos e alguns guardas, autoridades vestidas em fardas caramelo, segurando um rapaz negro, provavelmente menor de idade e que não chorava nem sorria; também nada esboçava de alegria ou de tristeza. Calçava chinelos pretos, bermuda puída e camiseta de malha. Preta. O povo da calçada, eu entre ele, abriu um clarão. Fomos encostando na parede, meu caso; outros, com cuidado, passaram a disputar espaço com os carros no meio da rua. Uma ambulância passou com a sirene ligada.

O negro, altivo, olhava a todos nos olhos, como que perguntando vocês estão olhando o quê.

Passaram por mim, dissipada a confusão.

Já no elevador, segundos depois, alguém com quem trabalho perguntou se o relatório estava bom. Respondi que ainda não tinha lido. Respondi olhando para o marcador luminoso dos andares do elevador.

Desci no sétimo. Ao alcançar minha sala olhei o quadro da parede pensando na razão pela qual a menina chorava.