Cotidiano de Ditaduras

“O homem nasceu livre e por toda parte vive acorrentado”, diz Jean Jacques Rousseau, em sua célebre obra “O Contrato Social”.

Ocorre-me hoje escrever sobre a índole ditatorial dos seres humanos, que se manifesta em nosso cotidiano, em múltiplos exemplos contidos em pequenos fatos, que retratam essa verdade do filósofo iluminista.

Começo pela ditadura da indústria dos lacres dos produtos vendidos em todos os estabelecimentos comerciais. Talvez por excesso de eficiência, para impedir violações, uma operação que se torna angustiante é abrir certas embalagens, desde produtos comestíveis até higiênicos, bebidas, presentes, etc.

Alguns tipos de garrafas de vinho e de azeite quase nos levam ao desespero e provocam danos ao recipiente; certos enlatados, nem com abridor cortante se destampam; sabonetes e pastas dentais nos obrigam até a furar com agulha o bico ejetor; sabonetes e sabão-em-pó, embalados em papel-plástico, só se abrem com tesoura ou faca. Defumados empacotados, idem. Certos bombons e caramelos, nem com os dentes... Há latas de cerveja e refrigerante, com guias de lacre, que se quebram ao emprego de pequena força, o que dificulta a abertura.

Robinson Crusoé, sem nenhum apetrecho apropriado , vivendo sozinho numa ilha, sofreria com o lacre de alguns produtos que,porventura, viessem bater à sua praia como restos de algum naufrágio. É a imagem a que recorro para os idosos que moram sozinhos e não têm força suficiente para romper esses lacres.

Outra ditadura que denuncio, muito epidêmica nos hotéis do interior paulista, é a da margarina, em substituição à manteiga, a título de redução de despesas. Aqueles pequenos e horríveis invólucros de plástico usados para geléias, com lacre que se abre só com os dentes e faca, agora trazem a margarina no lugar da manteira, como se fossem a mesma coisa.

Deixemos a manteiga fora da geladeira, por algumas semanas, e veremos que ela perde rapidamente suas propriedades. O mesmo não acontece com a margarina, cuja textura química é quase semelhante a do plástico, sendo, portanto, de difícil absorção pelo organismo.

E tudo por razões de economia - economia de palito... Porque não há café-da-manhã para mim sem pão frances e manteiga,por mais vistosa que seja a mesa.

Outra ditadura é a da unanimidade. O senso comum tem sua sabedoria, mas, concordo com Nelson Rodrigues, quando afirma que toda unamidade é burra. Se o filme, a música e o livro são aclamados, a crítica, para fazer média com a indústria da publicidade e o mercado de consumo, logo os coloca na galeria dos geniais, obrigando seus autores e atores a matar um leão por ano para provar que são bons. Jogador de futebol marca um gol e vai para a Europa por milhões de dólares.

O valor, a qualidade intrínseca da obra, não se mede pela quantidade, mas pela intensidade com que perdura no tempo, e não no mercado.

Outra ditadura é a dos diagnósticos médicos e odontológicos. Qualquer paciente do médico e do dentista hoje tem que gastar uma fortuna em exames, para que obtenha um diagnóstico ou inicie um tratamento.

A tecnologia, evidentemente, ajuda muito, mas essa indústria de exames e diagnósticos, alimentada por médicos, dentistas e clínicas de exame, vai de vento-em-popa... Pensar que, antigamente, os dentistas práticos, os médicos-de-famílias e até farmacêuticos sabiam o mal o paciente tinha e do que ele precisava.

Eu poderia ficar escrevendo sobre muitas outras ditaduras, inclusive esta sugerida pela cartilha do governo petista, de impor ao ensino escolar a adoção de algumas expressões idiomáticas do linguajar comum (e errado) em certos livros (“nós vai, nós fumo...”) e a supressão de outras, como a daquela canção “atirei o pau no gato”, a pretexto de ser antiecológica.

Tem ainda aquela ditadura das senhas de filas de banco e correio,distribuídas de acordo com o número de operações no caixa, verdadeira revogação da fila indiana. Pura empulhação, puro non sense. Mas é de passo em passo que as ditaduras vão levando aos grilhões do homem aos quais alude Rousseau.

Feichas Martins
Enviado por Feichas Martins em 27/05/2011
Código do texto: T2997525