ULTIMO AFAGO - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Jogo na cova esta flor amarela. Que ela lhe acompanhe por toda a eternidade. Agora sim, sinto-me livre de verdade. Nunca fui dono de minha vontade, e isso, honestamente nunca fez diferença para mim, a não ser naquele dia em que fui confiscado de meu dono, separado daquele que, apesar de ser meu senhor, sempre me tratou bem e nunca me castigou. Não fosse seu amigo me comprar e me libertar em seguida para que eu pudesse segui-lo, estaria eu sofrendo nas mãos de algum feitor. Estou aqui, na terra de meus descendentes, cumprindo o meu degredo voluntário na África. Agora vejo Domingos de Abreu, inconfidente, passar para a eternidade depois de tantas dores no corpo e na alma. Não sei que caminho seguir. Não sei se vou para a direita, esquerda, ou se volto para casa ou daqui começo uma nova vida. Domingos, meu velho, vou sentir sua falta e vou custar a ter uma vida normal. Nada tenho de meu e ninguém me quer bem. Estou só, apenas com a vida para seguir adiante.

Durante muito tempo servi meu senhor, e não fazia parte de seus amigos. No dia em que ele foi condenado por participar da inconfidência, todos os seus amigos se foram, amedrontados, e só eu fiquei. Condenado, fui confiscado como a todos os seus bens. De último passei a ser o primeiro, o único, creio eu em sua vida. Os guardas ficaram comovidos com meus pedidos para que me deixassem seguir com ele para a prisão. Loucura, dirão muitos. Comovente, dirão outros. Eu o servi quando bem e quero continuar servindo-o ainda na desgraça. Aquele dia foi decisivo para mim. Foi realmente uma decisão difícil, pois teria que seguir dentro de uma prisão sem ter culpa alguma, deveria eu ficar mofando naquela cela do Rio de Janeiro, junto com os condenados, sem nunca ter conspirado contra ninguém. Mas eu fui.

Aquele dia havia um sol brilhante, como a anunciar um dia lindo. Uma brisa suave varria as ruas de Vila Rica e em nada lembraria a escuridão que tomaria conta de minha alma e o frio que tomou conta do meu corpo ao ver meu senhor com algemas nas mãos como um criminoso. Até o som dos sinos anunciavam um destino fúnebre. Partimos para a prisão no Rio. Eu percorri todo o caminho a pé. Meus pés chegaram à capital machucados, quase em carne viva. Enfrentamos pedras, espinhos, chuvas, frio e calor. As noites me castigavam mais ainda, porque eu me perdia em pensamentos, lembrando da morte certa que ele enfrentaria.

Na cela, foram três anos de suplício, à espera do cumprimento da sentença de enforcamento. Sereno, firme e sempre com palavras de ânimo estive presente na vida de Domingos, encorajando-o a enfrentar seu destino. Foram inúmeras as noites que não dormi naquela cela horrível, no chão resfriado daquele lugar úmido e sem ventilação alguma. Em alguns momentos pensei que iria enlouquecer. Suportei firme para que meu senhor também o fizesse.

Duas noites estavam entre nós naquela cela e a morte. Eu iria sobreviver, pois apenas obtive licença de acompanhamento, mas morreria junto se preciso fosse. Qual não foi nossa surpresa ao anunciarem o exílio. Seria ele degredado para África. Melhor que a morte. Por um instante pensei que não seria mais necessário, mas decidi que, se deixassem, eu iria com ele para onde fosse. Olhei fixamente para o único entre eles que morreria na forca. Comuniquei com meu olhar que eu era solidário a ele. Joaquim olhou-me no mais profundo da alma, com um sorriso heróico agradeceu minha solidariedade e parecia estar cheio de coragem. Não o vi mais naquele dia. Atravessamos o oceano e chegamos aqui. Cumprido o degredo, continuei a servir fielmente meu senhor, com a saúde debilitada e a alma amargurada. Muitas vezes o vi, próximo à praia a olhar perdidamente para o horizonte. Ficava ali, horas e horas, fazendo a travessia em pensamento até o Brasil. Certamente em suas lembranças, revivia os sinos das igrejas, as ladeiras das cidades em que brilhavam ouro e diamantes. Provavelmente revivia as tabernas e as garotas tantas, as noites animadas e as festas que ele tanto gostava de oferecer em sua casa. De longe eu o observo. Às vezes também atravesso o mar até minha terra natal. Revejo amigos, revejo sofrimentos e dores, e revejo principalmente Antonieta. Mulata linda de dar gosto, mas que sempre teve por mim apenas um carinho de irmã.

Fiquei seguindo os passos de Domingos como uma sombra. Talvez apenas isso eu tenha sido. Nicolau, apenas um nome sem sobrenome, sem família e sem posses. O escravo fiel, como me chamavam na prisão. Nada mais. Mas não estou aqui por fidelidade, mas sim por gratidão. Inúmeras foram as vezes que vi meus companheiros no tronco a sangrar. Nada disso aconteceu comigo. Ajudava-o no comércio e vivíamos bem. Também nunca desobedeci. Meus amigos sempre me chamavam para uma fuga, mas eu não encontrava motivos para sair dali. Estava bem. Talvez agora tenha eu que pensar no que fazer da vida. Já estou velho, cansado, não tenho mais serventia ou forças para continuar.

Sopra um vento gelado em meu rosto. O coveiro joga a última porção de terra sobre o caixão. Domingos Vieira não existe mais. Sigo meu caminho em frente, olhando para trás. Minha visão já deturpada, ainda mais com as lágrimas que ainda insistem em escorrer pela minha face, vou me afastando do cemitério para continuar existindo. Ficou apenas a flor amarela, como último afago. Vejo-a ainda sobre a cova até que o vento a leve por aí. E eu vou com o vento, sem destino, sem casa, sem lugar. Por aí.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 28/05/2011
Código do texto: T2999107
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