Assassinato

Era uma noite fria e escura. Não sei ao certo o que me levou para aquele beco sujo e nada convidativo. Estava simplesmente vagando sem rumo e praticamente sem pensar por essa cidade labiríntica, e quando acordei de meus pensamentos profundos, aqui estava.

Ou melhor, me acordaram. Da escuridão do beco vinha um gemido, quase um sussurro, que, apesar de baixo, transparecia com enorme clareza uma profunda sensação de dor. Corri até o fim do beco, e lá no canto mais escuro e sujo encontrei algo que outrora fora um homem, mas que agora não passada da sombra devido ao pelo aspecto fraco e abatido.

“Salve-me” – sussurrou ele. Imaginei que ele fora vitima de alguma violência e já ia apalpando seu corpo em busca do ferimento e já pensando em como o carregar dali.

- Não estou ferido – resmungou aquele ser.

- Mas então porque estás assim tão fraco? – questionei eu.

- Não estou ferido por fora. Mas por dentro estou estraçalhado, fraco demais até para morrer.

- Mas o que houve contigo? – Insisti.

- Sente-se um pouco a meu lado e te contarei – convidou ele, e prontamente aquiesci. A triste narrativa prosseguiu:

- Você sabe o que é a pobreza? Duvido muito que conheça essa palavra plenamente EU a conheço – começou ele, tomado subitamente por uma onda de animo, sua voz ficando novamente firme.

- Eu a sinto. Eu e ela já somos um. A pobreza verdadeira é estar suspenso no vácuo, ser um corpo solto no Espaço. Não há dimensões, não há qualquer força da física que possa servir. Onde está irá ficar, nenhum esforço de sua parte fará que algo mude, se mova.

- Esse vácuo é a ausência completa de tudo que é necessário para a felicidade e a impossibilidade de se obter tais coisas, ou ao menos a falta de fé que seja possível. É assim que eu vivo – ou melhor, não vivo, somente existo. Eu não possuo amor. Não me amo e não tenho quem me ame de verdade, pelo que sou realmente. Sequer tenho alguém que me conheça, e novamente inclui-se ai a mim mesmo. Não tenho amigos verdadeiros. Não tenho bens matérias e nem chance de obtê-los. Enfim, não possuo e nem sou coisa alguma, literalmente a palavra NADA me define. Não há nada aqui além do vazio, e no vazio não há coisa alguma. Decifre como puder, mas essa é minha realidade.

Não pude mais me conter diante de tamanho desalento.

- Não se renda assim! Você ainda está vivo, ainda pode mudar isso! Como pode se entregar assim?

- Meu caro, não desisti tão facilmente. Já experimentei amigos, muitos, e todos me desapontaram. Tentei o amor, e ali consegui minhas maiores dores. Pedi ajuda de Deus, mas recebi somente seu silêncio. Nada sobrou, nada mais pode ser feito.

- Mas você não pode acreditar nisso! Se acreditasse mesmo já teria se matado. Se não o fez, é porque ainda enxerga alguma esperança.

- Ai que se engana. Eu sou fraco. Nem mesmo para isso sirvo. Já tentei, mas recuo. Não posso lidar com isso. Acabar com tudo exige força e não possuo essa qualidade em nenhum grau, atualmente!

- Então se já diz ter tentado de tudo, como pode pedir que eu te salve? O que posso eu fazer? Nem mesmo sei quem tu és!!

- Ah sim, sabes. Como sabes. Meu cabelo não é comprido como o seu, minha voz não é tão firme e confiante como a sua. É compreensível que não me reconheças, pois agora podes notar nada mais do que a minha forma nas sombras e ouvir minha voz, mas se não me engano a Lua irá ser revelada pela nuvem que está sendo levada embora pelo vento! Quando isso acontecer, olhe-me bem e digas se reconhece-me ou não.

E conforme ele falava de fato o vento oeste ficava cada vez mais forte e o ambiente mais iluminado. A lua, mais brilhante do que nunca, começava a dissipar as sombras.

A escuridão foi sumindo daquele beco... e entrando em meu coração.

Quanto mais claro tudo ficava por fora, mas escuro eu ficava por dentro. Pois eis que a luz crescente revelava toda a miséria do ser diante de mim... O olhar fundo, pesaroso e marcado por olheiras; as roupas em farrapos; o corpo esquelético e a cor da pele pálida e doentia. E bem sabia eu que aquela visão externa ainda era bela e comparada ao estado interno do espirito habitante daquele corpo debilitado.

Mas isso não era isso que trazia as trevas para dentro de mim. Era o rosto dele.

Dele? Aquele rosto era meu! Ele ERA EU!!!

- Agora me entendes? Você sou eu. Essa cidade confusa, esse labirinto, esse beco escuro, úmido e sujo é a sua mente. Você está olhando para o espelho. Tu és o que há de bom em mim, e que talvez um dia possa vir a existir. Eu sou o que és hoje, agora! Então por favor, salve-me! Só tu podes. Só você sabe o que deve ser feito.

Sim, eu sabia! Eu agora me reconhecia. E não mais sentia piedade. Este ser, este outro EU realmente é fraco, é patético. Ele sofre e se acha injustiçado, mas somente está colhendo as consequências de sua tolice. Ele ora a um deus que nada mais é do que um legado familiar e cultural, prossegue amando quem somente o destrói e busca suas curas somente no exterior, nunca dentro de si. Agora tudo que eu podia sentir era somente desprezo. E sabia o que devia ser feito...

... nem mesmo precisei enviar o comando do cérebro para meus braços e mãos. Antes de eu notar, elas já envolviam o pescoço daquele medíocre projeto de homem, impedindo-o de respirar. Eu podia sentir a vida, o fôlego, escapando daquele corpo. Não houve resistência alguma, e em seu ultimo suspiro, meu antigo EU disse somente “obrigado”.

FIM

PS: Isso realmente aconteceu em minha mente há uns dois anos, e desde esse oportuno homicídio, o assassino que vos fala vem vivendo sem conhecer encontrar, nem ao menos passar perto, da tal pobreza absoluta e nem qualquer forma mesmo que mais leve daquela tristeza. Hoje somente aproveita cada momento presente, sendo feliz e equilibrado, e com total confiança de que esses momentos felizes se renovarão sempre e ainda aperfeiçoados. Algo que alguns chamam de confiança ou esperança para o futuro, mas eu prefiro chamar somente do resultado da autoestima somada ao autocontrole, gerando como produto a autoconfiança!

R.I.P. meu antigo eu!!