LIBERDADE, ENFIM... - CRÔNICAS HISTÓRICAS

A sinhá hoje amanheceu mal humorada. Também pudera, hoje já faz quinze dias seguidos dessa garoa que não para. Tudo aqui nesta casa já está cheirando a mofo. O sinhozinho já chega batendo a porta de raiva, brigando com todo mundo e ai de quem olhar pro lado dele. Hoje eu quero estar no quartinho lá do fundo, bem escondidinha com meu filho quando ele chegar. Ontem ele entrou aos gritos por causa da lavoura que está sofrendo com tanta água.

Hoje até que o sol deu as caras, mas foi por muito pouco tempo. Da janela da cozinha fico a maior parte do tempo observando aquela montanha quase sempre encoberta pelas nuvens, tal como a vida de meu filho Miguel. Vive aqui comigo por graça do meu senhor, foi alforriado mas só quando ele e a senhora Maria de Jesus morrerem. Manoel da Pena assinou a carta com essa condição. Estou aqui com sua liberdade nas mãos. Quase não me contenho de tantas lágrimas de felicidade. Mesmo tendo essa condição, sei que Miguel não vai ser vendido para um senhor bruto como existem tantos por aí. Vai demorar a ficar completamente livre, mas ele já tem melhor sorte que todos os escravos daqui. É como aquela montanha coberta pela nuvem, está lá, de pé, firme, mas quase sempre sem se revelar por inteira. Miguel tem treze anos e acompanha Manoel na mineração. Menino inteligente, está aprendendo as letras e os números e ajuda o senhor na administração da fazenda. Aqui não tem muito ouro não, mas sempre se consegue o bastante para manter essa fazenda funcionando. São mais de duzentos escravos e essa casa com dois pavimentos e trinta cômodos. É uma fazenda bonita viu, tal como não existe nessa região. De longe a gente consegue ver essas janelas azuis contrastando com as paredes brancas atrás de um jardim imenso onde as crianças passam o dia brincando, quando não está com essa chuvarada.

Eu acorde ainda de madrugada, quando tudo ainda dorme. Quando o senhor vai para as datas eu já coei o café e fiz os biscoitos e bolos de todo dia. Sou muito boa nisso e todo mundo me elogia. Vez em quando eu consigo esconder algumas quitandas e levar para os companheiros na senzala, aonde vou todos os dias saber notícias de Firmino, meu pai que já esta tão velhinho e doente. Hoje ele vai saber da novidade da alforria do neto. Enquanto tempero esse porco, fico imaginando o sorriso que ele vai oferecer a todos nós e conto as horas para poder levar a novidade. Miguel já sabe, Manoel contou ontem a ele que ia fazer a carta. Ele chegou à noite me falando, e eu não acreditei em nada. Só quando vi o documento pela manhã, mesmo sem saber ler é que me dei conta de que realmente meu filho está livre.

Eu até que tinha recebido um convite para uma fuga e ir morar num quilombo. Não quero nem pensar nisso mais. Pelo meu filho. Sou bem tratada nesta casa e sou até respeitada. Sou eu que alimento o casal, seus cinco filhos e os doze netos. São minhas mãos que preparam todo o alimento, e eles parecem ter afeição por mim. Só fui castigada uma vez, quando aqui cheguei e fiquei conversando na nossa língua africana com outra escrava. Pensaram que estávamos combinando uma revolta e eu tive a boca fechada por uma máscara dois dias. Aquilo doeu muito e nunca vou esquecer. Mas enfim, a liberdade do meu filho é o que mais me importa nessa hora. Só de saber que ele vai continuar aqui, não vai ser vendido e separado de mim já é um ganho para minha existência. Olhando a estrada que ultrapassa a montanha e cruza esse mundo de Deus, imagino minha estrada percorrida até aqui. Quando cheguei aqui tinha apenas quinze anos e trabalhava num engenho perto de Recife. Fui vendida porque o engenho parou de funcionar e fomos todos vendidos para as terras das minas. Trago no rosto as marcas de tantas agressões que sofria lá. Aqui, havia pensado em fugir, em me revoltar, mas encontrei nessa casa a velha Sinhana, que me ensinou os afazeres domésticos que hoje, proporcionam uma vida menos sofrida, apesar de ser escrava e de nunca me esquecer dos meus companheiros que estão na senzala. Nesta casa, eu moro num quartinho de fundo, no andar de baixo junto com Miguel. Temos duas camas no quarto, o que não existe na senzala e uma vida até confortável para uma escrava.

A porta se abre e Maria entra na cozinha elogiando o cheiro como sempre faz. Diz sempre sorridente: Tereza, hoje você caprichou. Ela vem sempre olhar a comida antes de servir naquela sala chique de jantar da casa. Ali naquela mesa enorme eles fazem suas refeições diárias. Hoje, tudo parece que está demorando mais que o normal, tamanha minha ansiedade em visitar a senzala.

A chuva resolver dar uma trégua por volta das seis da tarde. Espiei pela janela da sala e ouvi os sinos da Igreja lá da vila. Deve ser dia de festa, pois eles repicavam continuamente. Para mim era um dia de festa. E depois do jantar, enfim dirijo-me à senzala com o papel do Miguel nas mãos. Encontro o Firmino, quase dormindo. Consegui hoje levar um pouco de carne de porco do almoço para ele. Miguel me acompanhou e leu as palavras mágicas para que ele escutasse:

“Morro Grande, 1743. Manoel da Pena e sua mulher Maria de Jesus (...) senhores e possuidores de um mulato por nome Miguel, filho de Tereza, da nação cobu, em razão de lhe haver nascido em casa e por o haverem criado pelo preciso amor que lhe têm gratuitamente lhe dão pura e irrevogável doação carta de alforria e liberdade de hoje para todo o sempre, somente com a obrigação de os acompanhar e servir enquanto vivos, e mortos poderá ira para onde quiser.”

Firmino coçou a cabeça, olhou-me com seus olhos perdidos em seus pensamentos, e depois de uns instantes de silêncio, sorriu e disse “ta bão fia.”

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 02/06/2011
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