SEMENTES DE LIBERDADE - CRÔNICAS HISTÓRICAS

O Largo da Piedade amanheceu bonito e movimentado. A cúpula do convento brilha e reflete a luz do sol, como que a multiplicar sua luz e seu calor. Vejo escravos carregando a alta sociedade em suas liteiras e muita gente dentro da igreja. Nas casas, na rua acima da praça, pessoas amontoam-se nas janelas para assistir ao macabro modo português de se fazer justiça. Neste país é proibido sonhar. Tudo o mais é permitido: pagar impostos, passar fome e bajular a corte e os governadores. Querer o bem das pessoas e o fim da escravidão é crime. Crime pelo qual estamos hoje sendo executados.

Tambores rufam e anunciam o fim trágico de homens que ousaram pensar um país livre e justo para todos. Nossos irmãos das Minas sonharam primeiro, e agora nós, baianos, mostramos a todos os governantes que o medo que tentaram nos impor não existe. Sofreremos o mesmo castigo de Tiradentes, e outros certamente virão. Somos sementes de liberdade, plantados no chão dessa pátria, regados a sangue e lágrimas, a lutas e sonhos.

Aqui, ouvindo esses discursos contra os traidores, relembro a manhã de agosto em que a cidade acordou com os nossos panfletos pedindo ao povo que se ressuscitasse da escravidão e da submissão. Muitos ouviram nosso apelo e compartilharam do nosso sonho. Foi bonito ver no rosto dos pobres, dos comerciantes e escravos, a esperança renascida de um simples papel em que estavam impregnados os anseios de tantos e pelos quais muitos deram a vida. Revejo-me nos tempos de soldado em que eu andava pela Bahia com meus companheiros e nas noites conversávamos sobre o dia em que viveríamos sem escravos e sem o jugo do governo colonial. Escrevi e estudei tanto, que adquiri conhecimento necessário para provocar a vontade de viver livre e a fúria dos governantes. Acabei sendo o culpado de escrever e espalhar esses cartazes revolucionários. Fui eu mesmo, e agora termino minha vida com dignidade. Somos mesmo contra esse absolutismo fora de moda que não suporta um simples texto com palavras que não lhe são familiares.

Olho em volta e vejo meus companheiros que sofrem comigo o mesmo martírio. Vejo lágrimas em seus olhos e os meus estão secos. Não há o que chorar e o povo que nos cerca partilha solidariamente do nosso fim. Aliás, não será o fim, como não o foi para os revoltosos de antes. Somos mais uns que se vão e abrem caminho para outros que virão. Não tardará vermos o Brasil livre, e assim nossa morte não será em vão. Ana e Domingas, que sorte, sobreviveram. Nós ficamos, mas com orgulho. São muitas as casas e igrejas que guardaram o papel tão abominável que levou à fúria que degredou muitos de nossos aliados e nos condenou à morte. Do meu lado, estão Manuel Faustino , João de Deus e Lucas Dantas. Por um momento penso que eles estão sendo executados por minha culpa. Foram muitos que aderiram e que escaparam. Somos pobres e não temos ninguém por nós. A forca e o esquartejamento são uma pena dura demais para quem apenas queria liberdade. O terror das autoridades não atingirá nosso povo, que agora mais consciente e mais esclarecido, encontrarão certamente outras formas de luta e de continuar esse movimento que iniciamos. Os delatores vão encontrar o que os esperam.

A forca à nossa frente, nos aguarda para por fim à nossas vidas. Não colocará fim, entretanto aos nossos sonhos. Confesso que gostaria de ter mais coragem nesse momento. Não que eu esteja fraquejando, mas confesso, é assustador observar à sua frente o instrumento que levará sua vida. Tento desviar o olhar, mas não consigo, ela é por demais assustadora e me faz ficar aqui estático, a pensar na dor que ela me provocará. Sinto muito pelo choro de meus companheiros e por não poder mais nada fazer nesse momento. Portugal não demorou muito a julgar-nos e não esperou nem um ano para nossa execução, como esperou todos os julgamentos de Minas. Melhor assim. Que aconteça logo o que tem que ser feito. Não prolonga nosso sofrimento.

Olho mais uma vez para a porta da igreja de N. Sra. Da Piedade e peço perdão pelos meus pecados. Penso que aqui cumpro meu calvário e que teremos a piedade divina. Perco-me por um tempo observando o templo e a população que se ajunta para ver esse espetáculo lúgubre. Tal como meus companheiros, eu Luiz Gonzaga das Virgens, sinto um arrepio tremendo quando os discursos cessam. Será lida a sentença e em seguida a execução capital. Por um momento sinto-me fraco e amedrontado. Como soldado vi a morte rondar-me várias vezes, mas nunca com tal certeza como a vejo agora, personificada naquele patíbulo fatal. Meu Deus, guarde a mim e aos meus irmãos. Soa um clarim agudo, sombrio, em meio ao silêncio de todos. Chegou a hora. Nova semente de liberdade será plantada nesta terra. Renascerá certamente, não sei onde. Mas renascerá, mais forte, mais vibrante, vencedora.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 02/06/2011
Código do texto: T3010345
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