Série: Meu primeiro ...
...Cachorro
Um cachorrinho chama por mim em um canil qualquer da vida. Eu nunca tive um cachorro e acho que chegou a hora. Já escolhi a raça (um bulldog), quero um cachorro feio, não quero um cachorro de madame, porque coisa que não sou é madame. Quero um cachorro com cara de bravo, mas que seja mansinho. Já escolhi também o nome: Pierre. Minha amiga Anita não aprova, mas foi ela quem me deu a idéia, através de uma crônica sua. Ela acha que seria constrangedor se os dois, o meu cão mansinho com cara de bravo e o meu suposto amigo se encontrassem um dia. Não será, por esta simples razão : não tenho um amigo chamado Pierre. Nem conhecido. Nada. E eu queria um nome francês porque meu buldogue será de origem francesa, aquele que tem as orelhinhas em pé. Por isso também não haverá problemas porque meu doguinho terá um apelido: Morceguinho. Eu podia chamá-lo de Charles, porque quando estive em Paris conheci um guia francês nojento, com esse nome. Mas não iria dar a um cachorro o nome de um ser humano repelente. Nem o nome de um amigo, porque amigos não podem ser confundidos. De qualquer forma fico aguardando a Beatriz ler este texto e me dar uma sugestão de nome para um cachorrinho. Ou a Nena ou a Lena, todas elas amigas minhas e deles. Deles, os cães.

Eu nunca tive um cachorro, minha mãe não gosta deles, a Lolota não conta, eu era um pouco mais que um bebê e nem me lembro dela. Mas há uma foto, Tarcízio e eu e a Lolota atrás, desfocada, então a Lolota não vale. O amor entre um ser humano e um cão  é eterno porque amor é coisa de alma, espírito. Sei que os cães têm alma, não sei se têm espírito, mas não deve haver nenhum problema em relação a isso, já que os porcos têm. Meu irmão Tarcízio teve e dele guardo duas lembranças: uma, quando minha mãe o encontrou calmamente dormindo na cama de casal do quarto de visitas. Ficou tão brava que arremessou o objeto   que estava nas mãos. Não lembro qual o objeto, só me lembro que bateu em minhas costas porque eu pulei na frente para proteger o cãozinho. A outra lembrança eu não guardo, contaram: porque ele não cuidava, deram o cachorro e um dia, quando ele passava do lado de fora da nova residência do cachorro, eles se reconheceram. O cachorrinho começou a latir e Tarcízio identificou o latido. Mas não houve compaixão. Cada um continuou sofrendo em sua casa, longes um do outro para sempre. 
 
As pessoas estão duvidando que eu tenha capacidade para cuidar de um cachorro, duvidam que eu tenha para cuidar até de uma criança. Nunca gostei realmente de cuidar de crianças, dar banho, mamadeira, limpar e dar  comida. Mas sempre gostei de brincar com elas, ler para elas, levá-las ao cinema, ao piquenique, ao circo, ajudar com os deveres de escola. Com animais também não tenho bons antecedentes. O gato do vizinho  comeu meu casal de periquitinhos azuis e meu coelho Alexandre. Os periquitinhos comprei, o coelho ganhei de um cara. E eu era tão boba que nem compreendi, na época, a razão do presente. Aliás, não compreender certas coisas ainda é uma característica minha. Mas eu nem gosto de coelho, só os de Páscoa, de chocolate. Quando eu estudava interna, em um colégio em  Andrelândia, havia um coelhário e servia-se sempre carne de coelho nos almoços de domingo. Eu não comia e minha porção era sempre dada para alguém. Diziam que a carne era boa, parecida com a de frango. Isso não me convencia e um dia a freirinha boazinha resolveu que me traria um pedaço de frango no lugar do coelho. Eu deveria ter desconfiado, pelas caras de minhas companheiras de mesa. Eu comia calmamente e elas olhavam para mim e riam. Olhavam mas não sustentavam o olhar. Aí fui desconfiando e elas acabaram se abrindo: eu estava comendo coelho. Estava, disseram bem: porque de um minuto para outro o coelho estava fora de meu estômago, despedaçado em cima da mesa: depois desse dia quem passou a ter nojo de carne de coelho foram elas. Mas nem assim fiquei mais esperta.