Novo sol

Acorda zonzo porque ontem a cola colou demais. Foi imagem sob o novo sol para maurícios e patrícias se aliviarem dizendo: “Ó, coidatinho”. Mas ele é um trapo. Não, não serve para retrato.

Olha ao redor e cachorros e outros homens reviram o lixo e lhe fazem companhia. Precisa de algo para comer. O pão de ontem? O café ralinho em gelo? Quem? Ou manda outra cola na cara para esquecer o nada que tem, sem contar com ninguém? Nesse dilema repetido, dia após dia, ele cresce. É como o sol que se levanta e ganha altura!

Olha o corpo feminino meio igual ao dele e sente o tesão que não sabe de onde vem. É levado pela natureza. Chega, encanta, abraça, beija. Nove meses depois e eles são três. Três desterrados, enxotados nas ruas, escorraçados de bares e outros lugares assépticos de mauricinhos e patricinhas. Aí não pode haver poesia. Ou poesia é a única arma à mão?

Se poeticiza, então é homem. Quem? Tem RG? Nome? Qual? Respostas não existem e não podem existir. E eu, a assistir tudo e a lhe dar o “envelope” (pastel) para comer, amaldiçôo a sociedade cínica e cruel. Eu quero muito, muito... eu quero esse homem, mulher e filho para além do papel.

Ele sonha a mulher para a qual olhar, bem no fundo dos olhos. Olhos não existem, quanto mais mulher. A dele foi um acidente. Quer ter filhos, e ele ganhou um outro igual, que já cata latinhas para comprar o copo de leite frio igual ao coração dos donos de padaria. Quer um emprego, mas como pode trabalhar sob o mau cheiro que lhe toma o dorso?

Não. Isso ele não pode. Resta-lhe a conhecida rua. E a velha cola, que gruda a vida num escuro indizível e horrendo e detestável e triste e repugnante. A sociedade, impiedosa, não sabe o que é humanidade!

Xingo todos os verbos feios disponíveis. Nada acontece. Cuspo todos os impropérios, mas, nesses casos, as palavras são impotentes.

E ele é homem. Acompanham-lhe dois rotos trapos pisados pela desigualdade, injusta, ostensiva, escancarada a olho nu. Ele só sabe ler o cassetete, o cachorro da “puliça” e o vizinho ranzinza que lhe ordena ir para o lugar onde os vagabundos de rua se ajeitam. Meninohomem, mulhermenina, filhoestorvo... vocês existem?

Os três estacionaram a vida numa espécie de infância congelada. Igualam-se em uma inocência que desbanca a razão. Cadê aquela malandragem saudável que ensina criança a ser gente? Cadê o boneco que sociabiliza? Cadê a bola à pelada que ensina o jogo da vida? Onde o caderno cheio de orelhas que a professora reprova, mas que contém cada um dos dias vividos? Onde a professora, cheirosa e linda, a fustigar o id premido pelo superego e instigando o ego a achar saída? Onde todos? Avós? Papai? Mamãe? Irmãos? Aqueles tios em cujos colos sentam os sobrinhos e ouvem histórias de como ser, estar e viver? Onde? Nada! Nada é o que lhes sobra. Eles em sinônimos de nulidade. Elezinho, a mulherzinha e o rebentinho, tão pequenos, catando latinhas.

Nas mesmas roupas barrentas e mal cheirosas, a tríade manca na anti-vida. Até na igreja não lhes dão lugar. Ele lembra ter ouvido que Jesus nasceu entre esterco e cocho, mas entende que tudo progrediu. Hoje o Jesus dos homens dorme em ouro. Seus homens não são com os desvalidos. Não! Eles ouvem as madames, mas a páreas de reles eles não têm ouvidos.

Trindade santa de impura pobreza e pornográfico desamparo: marido, mulher e filho. Vê-los passar por aqui é sentir um punhal a atravessar o peito para sair pelas costas. É morrer em e com vocês a morte que a imunda sociedade não assume, mas da qual é, desde sempre, a autora. Morro em mim porque sei que em vocês eu estou defunto. E a história diz não ser de agora.

E lá fora? Ah... lá fora o sol continua novo, ganhando altura, como sempre, todos os dias, indiferente à cola que lhes entorpece na sobrevida!