RAINHA DO SERTÃO - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Ninguém sabe, mas este é meu lugar preferido. Gosto de ficar aqui de onde posso ver toda a dimensão desta terra agora independente. Não é muito comum aqui esses nevoeiros, como o eram na minha querida Mariana, de onde trago as melhores lembranças de infância, de papai e mamãe. No Pitangui os nevoeiros já são menos intensos e aqui, neste sertão quase nunca existem. Somente se vê um desses nas baixadas ou em dias tão especiais assim. Acho, particularmente, linda essa névoa branca cobrindo o pasto. O gado fica todo encolhido nos cantos. Dá uma saudade do tempo de juventude e do tempo na cidade. Mas essa fazenda é minha vida, e dá gosto admirar cada pedacinho dela.

Pouco a pouco o sol vai rasgando a névoa e deixando-me ver o gado a se movimentar e ao longe o cemitério dos escravos. Gosto de me levantar muito cedo. Agora começo a ouvir o barulho da vida sertaneja que se inicia aqui no Pompeu. Há algum tempo o ouro das gerais foi se esgotando e eu consegui fazer fortuna com a criação de gado e com as lavouras. Terras, nem sei se já com a idade que tenho, consegui ver todas. Dizem que esta fazenda é o celeiro do Brasil, que daqui muita gente teve a fome saciada, e isso é verdade. Mas não é disso que mais me orgulho. Orgulho-me das pessoas que vivem sob minha dependência e minha tutela. E não são poucos. Há aqui uma multidão de gente, tanto quanto se vê em uma vila. Gosto de ficar aqui admirando tudo o que é meu e que será de meus filhos. Afinal nem tudo veio tão fácil quanto dizem por aí.

Sinto falta de meus pais que não estão mais comigo. Lembro-me saudosamente de meu finado marido, capitão Inácio, mas não sinto na pratica sua falta. Fui homem e mulher nestas terras das quais extraí o poder que hoje tenho nesta monarquia. Eu fui uma mulher guerreira, desde jovem, lá no Pitangui. Essa imensidão de terra lembra minha imensidão de ambições, tais como escolher meu próprio marido, contrariando a indicação de meu pai e os costumes de nossos tempos. Acabei por roubar o prometido de minha amiga, que hoje me odeia mais do que a própria morte. Ah Maria Tangará, mulher cruel, sanguinária, penso que ela nunca vai me deixar em paz com suas provocações. Mas não conseguiu ficar com o Inácio e nem ao menos chega aos meus pés em importância. Eu sou a rainha do sertão e essa fazenda é quase um reino sob meu comando.

Às vezes pesa um pouco ter que ser uma matriarca com tanto poder. Assusta-me às vezes. Vejo daqui tantos escravos, tantos homens, mulheres e crianças que tiram seu sustento. Parece que foi ontem, quando via o José Cisterna, meu escravo querido e de confiança a vir me revelar uma desventura ou descuido de algum negro. Foram muitas as vezes que vi carregamentos de todo tipo de alimento indo a direção ao Rio levar provisões para D. João VI e toda os que vieram de Portugal. Fui eu que salvei o reino e esse prestígio ninguém vai me retirar. Tenho a eterna gratidão da monarquia portuguesa.

Sinto submergir minhas forças. Já não ando mais tão rápido como na juventude e não consigo mais ficar na janela do quarto, à espera da volta de Inácio que sempre estava caminhando por esse sertão, soldado valente, capitão respeitado, mas tão ausente. Tenho calos nos cotovelos de tanto ficar à noite admirando a lua, as estrelas, e sempre de olho na estradinha, esperando que ele voltasse numa noite quente para que nos amássemos. Foram tantas as noites vazias, de estradas desertas, de coração apreensivo e de alma inconsolável com a ausência dele. Ainda hoje, mesmo sabendo que ele não está mais entre nós, vivo como se ele vivesse, e existem noites de janelas abertas e olhar perdido por esse sertão a espera de quem não mais virá.

Hoje me demoro a descer essas escadas e dar as ordens para que a fazenda mantenha-se sempre funcionando. Mas basta meu olhar para que minhas ordens sejam seguidas. Sabem que sou irredutível em cumprir castigos e em dar ordens. Essa varanda é meu trono, e daqui controlo o tempo e as atividades todas. Estou ficando sozinha. Meus filhos já quase não vejo mais, meu escravo de confiança e meu melhor mensageiro também já se foram. Daqui vejo o cemitério bem distante, mas o suficiente para trazer para perto as lembranças de tantos que ali estão descansando em paz o que não puderam em vida. Alguns vítimas de doenças, outros de trabalho duro e alguns de castigos exagerados. Arrependo-me de alguns. Sinto que em breve também eu estarei do outro lado da vida. É bonito ver a serra do outro lado da fazenda e sentir esse cheiro de mato. Cheiro esse que senti inúmeras vezes durante as viagens longas que fiz do Pompeu para Pitangui e para as cidades outrora ricas em ouro. Gostava de estar presente nas cerimônias religiosas, principalmente na semana santa, onde se pode ver todas as pessoas da vila, matar saudades e por em dia as novidades. Sinto falta das viagens. Elas me faziam muito bem, embora sempre me deixasse preocupada com a administração da fazenda. Hoje me sinto limitada pelas forças físicas, mas ainda tenho muito que fazer.

Sigo para o quintal e neste caminho dentro dessa grande casa, ouço os barulhos dos visitantes sempre presentes nesta casa. Já perdi a conta de quantas pessoas por aqui passaram. Padres, viajantes, soldados muitos. Todos sempre foram bem recebidos aqui e comeram do melhor existente. Na cozinha, sinto o cheiro de tudo o que se produz aqui. E de fora, lembro um a um dos meus escravos falecidos. Grito por eles na loucura de receber um possível perdão para que eu possa partir em paz. Passo já alguns dias na cama sem conseguir me levantar e alguns dias ainda dou ordens como antigamente. Parece que ouço as vozes deles, alegres, sorrindo, como nunca ouvi neste curral, nestas lavouras ou na senzala. Acho que me perdoaram. Creio que me perdoaram, Joaquina Maria Bernarda da Silva Abreu Castelo Branco Souto Mayor de Oliveira Campos, grande no nome e grande na história que ocuparei, com meus filhos e netos espalhados por estas terras gerais.

Hoje pretendo passar a noite na janela. Já não tenho tanto sono. Quero observar a estradinha e imaginar meu Inácio voltando, sorriso aberto, com uma nova cicatriz, como quase sempre acontecia. Quero ouvir o barulho do mato, do gado. Quero escutar a alegria da senzala, os batuques e as conversas altas até horas mortas. Quero sentir o perfume da fazenda, quero aproveitar cada segundo desta noite. Imagino que já serão das últimas que vivo. Ao fundo apenas o silêncio da capela e do cemitério dos escravos. Silêncio frio, gélido como minha alma, vazio como meu coração, despreocupado como os animais que vivem simplesmente sem ocupação alguma. Que a noite me traga o frescor das almas livres, o calor do entusiasmo solidário e a melancolia de sentir o fim próximo. Só a estrada me consola, à espera de quem chega na expectativa de percorre-la, numa viagem última, sem volta, mas ao encontro de todos os que já cruzaram-na. Inácio, até breve meu querido. Não vou mais me demorar. Que Deus o guarde para mim como fiquei guardada para você. Inteiramente.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 10/06/2011
Código do texto: T3026815
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