Um Tal Salvador

A memória traz imagens antigas, às vezes rebuscadas, de um passado que me transporta ao vestido curto e cabelos desalinhados.

Um tempo longínquo faz lembrar da professorinha de escola primária que, pelo prazer de ensinar, mesmo com as dificuldades de locomoção impostas à época, cobria quilômetros de distância até chegar à classe apinhada de crianças barulhentas e ruidosas.

Eu, que menina tímida, introvertida e rosto lívido, a olhava e ouvia com olhos e ouvidos, absolutamente embevecidos.

Não entendia muito bem a algazarra dos outros colegas. Muitas vezes, lá no íntimo, queria repreendê-los, exigindo maior atenção àquela criaturinha que me parecia tão frágil.

Na verdade, sua voz era de paz e ternura. Não lembro de um dia sequer, em sala de aula, que tenha deixado de usar a palavra amor. Nos olhava com olhos de carinho, como se fossemos filhos seus.

Trazia sempre consigo um livro de capa preta e, nos falava com um diferente brilho nos olhos a respeito de um tal salvador, que eu supunha, inicialmente, fosse um homem qualquer. Mal sabia dos propósitos que Este Salvador tinha traçado para a minha vida.

Escrevo tais palavras, como testemunho de um passado que pensei ter ficado apenas pregado numa parede velha e antiga da memória.

Tanto tempo se passou !!! Cresci, ... me formei, ... casei, ... tive filhos ... mudei de cidade e estado.

Mas, a vida nos traz surpresas ...

Mês passado, precisei visitar alguns parentes queridos em minha terra natal e, num sentimento saudosista, insisti com meu marido para que seguissemos mais alguns quilômetros e fossemos até aquela escola onde vivi uma infância recheada de acontecimentos.

Finalmente pude constatar que a velha escola ainda estava lá !!! A construção judiada pelos longos anos de uso, insistia em manter-se de pé. O coração sobressaltado ....!!! As árvores que sobraram, me pareceram agora tão maiores !!! Todo aquele ambiente, me trouxe a íntima sensação de que deveria ter vivido por ali, muito mais tempo do que efetivamente vivi.

De repente um alvoroço ... crianças barulhentas, ... a mesma sirene estridente, alertando sobre o final das aulas. E, como numa visão antiga, eis que surge entre a garotada, com passos miúdos e trôpegos, a mesma professora, agora uma idosa, rodeada de alunos. Firme, apesar da idade já avançada, e, com o mesmo, inconfundível olhar de carinho de outros tempos.

Com os olhos cheios d’água e o coração repleto de emoção, me aproximei. Ela percebendo o meu estado e, com o mesmo agora surrado livro de capa preta em uma das mãos, veio com dificuldades em minha direção, apoiou-se em um dos meus braços e, sem absolutamente me reconhecer, sussurrou em meu ouvido direito, as mesmas palavras que escutei de seus lábios, lá atrás quando criança : - Você já ouviu falar do Salvador ? Respondi, com a voz embargada, no abraço mais apertado que jamais dei em alguém : - Ouvi sim .... há mais de 40 anos e nunca, ... jamais esqueci !!!

 

Contribuição de Tânia Ribeiro

Germano Ribeiro
Enviado por Germano Ribeiro em 10/06/2011
Reeditado em 14/11/2022
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