FOI ASSIM 
Nunca vi tantos cobertores em minha vida, eu que nem sou friorenta, dormi com três. Soube de gente que dormiu com sete e sem tirar nenhuma peça de roupa com que passou o dia.
 
Foi assim em Arantina, por onde passamos por dois dias. Da família de minha tia Clarita (87) foram dezesseis pessoas. Da família de minha mãe, Zenita, (86) fomos oito. Assim a população da pequena cidade de nossa origem teve um aumento de vinte e quatro pessoas, o que é bem considerável se formos pensar que a cidade não chega a ter 2900 habitantes.
 
Arantina é ali, um pulo lá outro aqui, menos de três horas de viagem por uma ótima estrada, a paisagem maravilhosa. Não dá para entender porque vamos tão pouco lá, se ainda vive em nossas  lembranças. O bom é que a gente vai, vê e gosta, mas quando volta apaga completamente da cabeça aquilo que é, para recuperar o que foi.
 
O frio, o frio é de matar, eu havia me esquecido, absorta apenas nas lembranças. Teve gente que encarangou, e não foi para menos. Com tanta gente chegando acharam que talvez não coubessem todos nos leitos disponíveis e prepararam uma casa como dormitório coletivo para os sem tetos. E foi aí que a vaca foi para o brejo – um marido desavisado, lá pelas tantas resolveu ir dormir deixando a família para trás. Entrou, fechou a porta e apagou no breu das brumas de Arantina. Resultado? Esmurraram, bateram, gritaram, chutaram e não puderam entrar. Tiveram que pedir arrego na casa de uma das tias e por essa e outras muitas histórias foram deixadas para trás para serem contadas.
 
Eu, que não era sem teto, dormi cedo e bem agasalhada e cedo acordei para recuperar algumas lembranças. Andei, andei, fui para lugares para onde hoje ninguém mais vai a pé. Como consegui? É que hoje sou uma pré - atleta e subir morros é comigo mesmo. Alguém perguntou: para que ir a Londres se temos o fog bem aqui pertinho? E olha que um fog natural, limpo, dá gosto respirar.

Demos despesas sim, afinal alimentar todos nós não deve ter sido fácil: mas pelo menos uma despesa não demos: - as contas da Copasa vão continuar normais porque duvido que alguém tenha tomado banho nesses dois dias gelados. Se alguém disser que tomou não vou acreditar. Nem quando viajei para terras mais geladas usei tanta roupa e senti tanto frio.
 
Fui vestida a caráter para a Festa dos torcedores do Botafogo - sapato preto, calça preta, camisa branca, blusa de frio preta e branca, casaco preto e branco, bolsa preta e branca, óculos preto e branco, echarpe preta e branca, brinco preto e branco. E nem pensar que eu estava feia, estava bem bonitinha. E foi uma festança só, embalada pelos gritos dos torcedores e por todos nós cantando o hino: Botafogo, Botafogo, campeão desde1910. A comida estava de comer rezando, uma feijoada de gourmet. E a dança colocou todo mundo na roda. Minha tia Clarita, com seu andador, dizia: tenho alma jovem, eu não posso ficar parada enquanto todos dançam! E não ficou – quando percebi lá estava ela dançando e até minha mãe dançou embora diga: dancei nada, só me levantei, mas nem mexi as pernas!  Juro que não sei o que ela tem contra a alegria de viver.
 
E eles também estavam lá – os tios e os sobrinhos que já partiram, através de nossas lembranças, através de seus filhos e netos lindos, de todos nós que sofremos a saudade que deixaram. E é assim que viverão para sempre.