Suspenso

Sempre quis voar. Verdade! Não é coisa de criança não. A vontade ainda perdura. Gosto de altura. Perdoem-me a rima na prosa, mas para dor que não para só a poesia. Mesmo em prosa. Caí em pleno voo. Um voo de séculos. Quando era bem pequeno, tentava voar de uma cama para outra numa corda pendente do mosquiteiro. Na época, os repelentes elétricos não haviam chegado por aqui. Ainda tínhamos cortinado sobre nossas camas. Eram doces doceis rudes que velavam nossas brincadeiras. O meu azul bem claro, quase branco. Os véus da minha irmã de um rosa igualmente esvaído. Já o meu irmão tinha sobre sua cama os pálidos tules amarelos.

As três crianças andavam sobre os colchões do pequeno grande quarto. Éramos múmias assustadoras. Piratas implacáveis. Nossa fantasia era séria debaixo das mantilhas de nylon. Quando pássaros, voávamos. Íamos para tantos lugares... Voamos tanto que nossas camas ficaram distantes. Não conseguimos mais voltar.

Na ponte aérea vejo que o algodão doce do lado de fora da janela são nuvens. Nelas não moram anjos urinando chuva. Os mortos bonzinhos não tocam harpa por lá. O avião pousou. Não era rosa e grená. Não era vermelho. Tem as cores austeras das companhias aéreas. Seu nariz não cheira. Suas asas não batem e sua cauda não balança. Não tem olhos. Tem janelas lacradas. Não saímos dele por uma boca sorridente. Saímos pela porta. Por ela também nossa infância. Estou sozinho escrevendo. Os mosquitos deram uma trégua (Ou seria o desequilíbrio ecológico que acabou com eles?). Se insistissem na sinfonia ao pé do ouvido, resolveria tudo com um bom repelente. Agora sei da localização do Egito e de sua situação político-econômica. A pirataria somente no reino dos falsificadores na dimensão paralela de qualquer cidade. Quando quero ver esculturas tenho de ir ao museu ou à galeria. Como era fácil olhar para o céu e descobrir bichos e gente acenando pra mim...

Preciso urgentemente voar. Meu cartão de crédito está com o limite estourado. Minha conta corrente está no vermelho. Não consigo mais levitar! Vou escrever. Não tenho papel. Não tenho tinta. Tristeza... Mentira. Não sei mais escrever a mão. Como enviarei uma carta para a Turma do Lambe-Lambe? Não sei mais desenhar casinhas com chaminés e montanha e passarinho. Não ouço mais ninguém lendo dos ovos azuis no ninho e nem do sapo jardineiro. Hoje está frio e não há lareiras aqui. Estou triste e só. Não quero te vender nada. Não acenderei fósforos para me aquecer nem minha avó virá me buscar. Os mortos de nada sabem. Não voltarão tia Olívia, Vovô Eurico, Marta, Dona Alcina...

Esqueci das dobraduras do Plim-Plim, o Mágico do Papel. Vou girar o seletor de canais. A televisão é plana. Arrancaram dela os botões. Procuro encontrar o caminho do Sítio do Pica-Pau Amarelo com o controle remoto. A tela brilha, mas sem o pó do pirlimpimpim.

Assisto a um documentário sobre o Irã numa emissora educativa. Lugar interessante me parece. Há muito tenho vontade de conhecê-lo. Quando tinha nove anos, um golpe mudou a política naquele país. As liberdades foram contidas. Hoje me contenho. Não me contento. Voe comigo. Olha! Se a gente pular de cima da casa, é só batermos os braços. Pousaremos tranquilos no chão. Quem sabe não damos um salto do beiral e saímos pelo horizonte. O limite será o tempo de não olharmos para baixo. Pra frente. Avante. O texto vai como em gaivota voando até você. Apanhe o brinquedo. Desmonte. Monte. Quebre a cabeça e seja feliz nos ares.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 16/06/2011
Reeditado em 09/08/2018
Código do texto: T3039632
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.