O ÓDIO E A VINGANÇA

"Não permita que ninguém o faça descer tão baixo a ponto de você sentir ódio." (Martin Luther King)

Meu pai, quando solteiro foi protagonista de um episódio que trouxe conseqüências desagradáveis, mesmo após a sua morte. Vamos aos fatos: ainda adolescente tinha um irmão que apresentava problemas mentais. Apesar de dócil, esse irmão não estudou e só conseguia desenvolver tarefas simples, como esperar o carteiro na porta, ou levar alguma encomenda na casa do vizinho. Naquela época, mais do que nos dias de hoje, o doente mental, era motivo de chacotas e brincadeiras desagradáveis.

Perto da casa de minha avó, morava um indivíduo que gostava de abusar dos mais fracos, chamava-se Franco. Uma vez, incentivou meu tio a dançar com uma vassoura e a fazer cenas ridículas em público. Todavia, meu pai chegou ao local e impediu que tal disparate continuasse. Revoltado com aquela situação, disse algumas verdades às pessoas presentes. Uma verbalização emocionada de alguém que presenciou à humilhação pública de um ser humano indefeso. Tudo isso, impeliu Franco, mentor de toda aquela grotesca façanha, a revidar contra ele, com palavras de baixo calão e depois fisicamente. Entretanto, tal revide resultou em uma sonora surra do agressor, que humilhado deixou o recinto.

As seqüelas de tal episódio tornaram-se perenes. O rancor e o ódio contra meu pai permaneceram no coração daquele jovem por muito e muitos anos. Posteriormente, papai casou-se tendo quatro filhos, infelizmente, seu convívio com a família foi interrompido abruptamente. Pois, veio a falecer prematuramente, vítima de um atropelamento acidental, uma fatalidade do destino.

Passados duas semanas do nefasto acontecimento, meu irmão submeteu-se ao exame para tirar carteira de motorista. Na ocasião, Franco trabalhava no DETRAN de nossa cidade. Meu irmão prestou os exames e aparentemente foi aprovado. Todavia, observou-se uma rasura grosseira no resultado: o termo aprovado foi substituído por reprovado a revelia do examinador. Conforme, conseguiu-se comprovar pela verificação dos documentos. A única explicação plausível foi o ódio que Franco nutria por nossa família, já que trabalhava justamente nesse setor e tinha acesso direto a aquela papelada. Como não conseguiu vingar-se do pai, na primeira oportunidade, vingou-se do filho. Tal atitude vil, quase o levou a perder o emprego. Entretanto, a chefia imediata intercedeu em seu favor, pedindo a meu irmão que não prestasse queixa e assim foi feito. Portanto, não houve formalização da denúncia. Mesmo porque, uma semana depois, foi realizado novo exame e meu irmão conseguiu a habilitação para dirigir veículos.

Passados mais de dez anos, outro fato mostrou que as feridas no coração de Franco não tinham ainda cicatrizado. Seu filho fazia parte de nossa “turma”. Quando tinha jogo de futebol, costumávamos ir juntos ao estádio municipal. Numa dessas vezes, Franco foi buscá-lo. Na oportunidade, dirigia uma caminhonete ¾. Seu filho convidou-nos para voltarmos juntos. Imediatamente, umas 10 crianças subiram na carroceria do pequeno veículo, sobre o olhar atento de Franco. Quando todos estavam alojados pronto para o caminho de volta. Franco vendo que eu estava entre os passageiros, mandou todos descerem e tivemos que voltar a pé.

Avaliar os sentimentos de outra pessoa é difícil, todavia pode-se imaginar que o ódio deve ser bastante desagradável para quem o detém, e também, obviamente, pode trazer sofrimento para quem ele é dirigido. Assim, devemos sempre perscrutar quanto a sua presença em nosso coração. Jamais deveremos deixar que essa praga se enraíze, tomando conta de nosso Ser.

Alguns anos depois encontrei Franco novamente, já velho e calejado pela vida, travamos um rápido e amistoso diálogo. Naqueles breves momentos, pude perceber que o ódio e a sede de vingança tinha finalmente dissipado. Parece que o passar do tempo trouxe um pouco de sabedoria àquele senhor. Antes, mostrava-se arrogante, incapaz de admitir os próprios erros e principalmente admitir, que as conseqüências de nossas ações acabam revertendo em nossa direção. Agora, parecia mais humilde e cordato. Obviamente, o assunto tratado foi trivial e nada do episódio remoto relembrado. No entanto, naquela ocasião, que deu ensejo a toda essa problemática, se meu querido pai tivesse agido de forma diferente. Caso tivesse simplesmente levado seu irmão (meu tio) para casa, sem discussão ou briga, nada disso teria acontecido.

João da Cruz
Enviado por João da Cruz em 17/06/2011
Reeditado em 24/04/2015
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