Toda menina tem que ter um diário?

A minha prima Janice, filha da minha tia Maria é mais velha que eu e foi a minha primeira amiga. Quando criança a gente encontrava graça em tudo que víamos e, principalmente da cara das pessoas, o meu avô Eurípedes ficava uma fera quando nos via sempre dando muitas gargalhadas. E nós pouco importávamos com que ele e os outros tios diziam, já que a nossa felicidade era aquilo que só nós dois conseguíamos enxergar e vivenciar.

Nossa família é muito grande: eram oito irmãos da minha mãe Francisca, a tia Maria, tia Shirley, tia Eunice, tio Romildo, tio Reinaldo, minha mãe, meu avô Eurípedes. A minha avó Ilda ajudou a me criar, mas quando comecei a articular as idéias ela já não estava fisicamente presente entre nós, então não me recordo de nossos momentos. Bem, vivíamos todos numa mesma casa de quatro cômodos com um banheiro do lado de fora, sem falar que tinham os primos: Janice, filha da tia Maria, Querle e Carla da tia Eunice e eu, filho da mãe Francisca. Essa descrição familiar é mesmo só para esclarecer a confusão que é essa família que logo foi dizimada pelo fenecimento de alguns membros, assim como pela separação de outros, formando suas próprias famílias.

Nessa época os tempos eram difíceis, meu avô foi homem do campo, professor primário. Na roça não precisava ter formação acadêmica para lecionar, minha mãe foi aluna dele e desde esse tempo nunca mais voltou à escola, mas sabe muita coisa! O meu avô trouxe a família toda para a cidade presenteado com a herança de seu pai adotivo. O pobre Eurípedes nunca teve mentalidade para os negócios, porém, muita disposição para o álcool, fato que nos deixou em maus lençóis. Contudo, nesse tempo eu ainda não tinha nascido, e o meu interesse agora é discorrer sobre a minha relação com a minha prima Janice e seus diários.

Então, somos de uma família rural que buscava na cidade melhores condições de vida, sem o mínimo de entendimento sobre o processo capitalista e urbano da cidade. Fato esse responsável muitas vezes pela separação entre mim e a prima Janice, que fora sempre acompanhar seu pai pelo campo. Como é mais velha que eu, ela ingressou na escola primeiro, o que me deixou muito contrariado, já que sem ela eu não podia continuar sorrindo tanto. Logo ela já não tinha mais a mesma graça, pois parecia estar vislumbrada pelos novos amigos e todos àqueles objetos onde se escrevia, coloria e desenhava (cheguei a ter raiva dessas coisas que me tomava ela), outros amigos surgiram, porém incomparáveis.

Não tardou minha mãe recebeu uma proposta para trabalhar fora, capital São Paulo, nenhuma noção do quão distante era - falta? Não me recordo se senti no começo. Só me lembro que queria voltar o quanto antes para observar a semente de tamarindeiro que eu havia plantado no quintal e os peixinhos que tínhamos colhido no rego próximo do bairro Vila Beatriz, hoje São Sebastião. Bem, a viagem durou quase uma eternidade, nunca tive muita noção do tempo, hoje, só confirmo esse meu anacronismo.

Lembro-me de quando voltei e já não era mais eu, parecia ter me perdido e sido tomado por alguém novo, urbano, moderno e desapegado dos cheiros da simplicidade e natureza – mas lembro-me que chorei ao saber que meu avô havia cortado o meu tamarindeiro que, segundo a prima Janice, já estava crescido e muito lindo. Depois disso plantei e podei muitas árvores. Não demorou muito recuperar a antiga memória e tomar a linha perdida em meio a tantos novelos. Ela já estava num estágio mais avançado que o meu, escrevia diários, assistia televisão a noite, saia para casa de amigos maiores que nós e eu ainda era um menino, até a escola eu tinha perdido. Minha mãe não queria me matricular na capital, já que temia a realidade daquele mundo diferente do nosso. Lembro-me que vivia querendo roubar os diários da prima, mesmo sem saber decifrá-los. Quando entrei na escola e aprendi a ler – ah, vale ressaltar que quem me ensinou a ler foi minha mãe, a partir dos gibis da Turma da Mônica -, além de querer roubá-los e ficar ouvindo suas conversas com as amigas atrás da porta, interessei-me pela idéia de ter um diário, e outra vez uma contradição daquela realidade provinciana: meninos não possuíam diários. Os questionamentos eram inúmeros, porém a resposta continuava a mesma. Aos quinze anos tive um diário porque tinha a necessidade de escrever alguma coisa que não sabia ao certo o que era, mas existia. Portanto, aquela realidade provinciana da classificação/determinação já não existia externamente, ela estava implícita, o que me fez destruí-lo, antes mesmo de encontrar o porquê de querer tê-lo.