O DISCURSO QUE NÃO FIZ - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Tenho dois nomes e um apelido pelo qual a história me consagrará. Vejo um horizonte límpido diante dos carrascos que negaram a me executar. Morrerei feliz em saber que cumpri minha missão nesta Terra de Nosso Senhor, e que minha vida será semente de uma causa que é muito superior à vida de um ser humano como eu. Entrego-a inteiramente a todos os brasileiros, filhos do chão desta pátria abençoada por Deus e da qual me orgulho muito.

A prisão do meu corpo concedeu-me a liberdade da minha alma. Soube enfrentar com serenidade os tempos de cárcere e continuar reunindo forças para buscar a liberdade sonhada e a república pensada por tantos idealizadores de nosso Pernambuco. Não foi em vão minha vida. Não foram desnecessárias as batalhas das quais lutei e os muitos homens que encorajei a viver pela sua liberdade, mas se a morte primeiro viesse, que ela fosse enfrentada e assumida com a coragem destemida dos fortes e daqueles que não se curvam ante a opressão dos governantes. Se não tivesse aqui impossibilitado, amarrado como a um marginal, ainda minhas mãos deslizariam sobre um papel no qual colocaria um último discurso e um último artigo para os jornais. Escrevi tanto que minhas mãos parecem querer saltar para um texto, recado, testamento espiritual para meu povo.

Essa monarquia cruel, absoluta, é incapaz de perceber que seu povo quer uma vida melhor e não suporta mais tantos desmandos e tantas injustiças que invadem cada canto desta nação independente mas subjugada por um português que não ama o país que governa e que não sabe de que lado quer estar. A independência não nos trouxe a liberdade, mas nos renovou as esperanças. O espetáculo foi cancelado. O Brasil não quer mais ver procissões de desgraça em que os condenados são exibidos pelas ruas como troféus e como exemplo de comportamento a não ser seguido, como fizeram com Tiradentes e os conjurados baianos. A cena que montaram para mim foi invalidada. Queriam transformar meu enforcamento em um show ao ar livre, com todas as pompas dos tempos coloniais. Sou padre. Ainda se tem respeito pela religião e pelos votos sagrados. Os carrascos recusaram-se a me enforcar e liquidaram com a execução espalhafatosa.

Enquanto me amarram nesta forca para me arcabuzarem revejo minha vida e me assusto com tantas batalhas travadas em campos tão diversos. Foram muitos artigos de jornais, meus livros vários, que sei que morro, mas deixo muito de mim espalhado por esse país. Relembro cada um de meus companheiros de prisão e de coragem. Revejo nossa Confederação do Equador. Era uma ousadia mesmo! Criar uma república nas barbas da monarquia absoluta brasileira. Mas esse sonho não vai morrer, assim como vivas estão todas as tentativas anteriores. A sede de sangue dessa gente não vai conter o avanço da liberdade. Ela é uma avalanche desenfreada que não pode ser contida jamais. Destruirá todo o despotismo desses que não suportam nem mesmo pensar diferente sem que eles se sintam ameaçados.

Não viverei para ver. Encontraram agora um carrasco para me executar. A forca fazia sirva de lição, para que vejam que este país mudou, apesar de não ter tido nenhum rumo novo nesta independência orquestrada e milimetricamente planejada. Deixo a vida nesta terra para abraçar a vida eterna. Fico nesta terra nos meus livros e escritos diversos, lidos por tantos homens que querem partilhar do meu sonho. Olhando as pessoas que vieram assistir ao enforcamento do frei, tento encarar cada um em seu olhar. Alguns demonstram decepção pelo cancelamento da festa, outros evidenciam juntamente com um sorriso tímido, uma satisfação por ver a forca vazia. Aliás, num discurso que não fiz, por estar em silêncio imposto, invoco a forca vazia como símbolo da resistência de um povo que não mais quer ver mortos, aqueles que não se conformam com os rumos e os desmandos de um governo autoritário e impiedoso, cruel e sanguinário. A forca vazia é meu último artigo, minha última fala. A bala que vai em breve perfurar meu corpo demonstra a truculência de um governo que não tem mais controle sobre tudo e sobre todos. As sementes de liberdade plantadas pelos nossos antecessores estão germinando em flores e frutos cada vez mais arraigados no chão desta terra.

Súbito sinto um arrepio ao ver o carrasco que irá executar a sentença de morte. Ouço quando anunciam minha sentença, como escritor de papéis incendiários, traição... Condenam Joaquim da Silva Rabelo, que assumiu o nome religioso como Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, ou como todos me conhecem, apenas Frei Caneca. Sinto um vento bater em meu rosto suavemente, como a trazer um frescor para minha testa suada e fatigada pelo sangue que corre nervosamente por minhas veias, em suas viagens derradeiras neste corpo que em minutos estará inerte por uma causa nobre. Nestes instantes finais, relembro meus pais no bairro português, com nosso artesanato e os conselhos tão sábios. Relembro minha ordenação e meus votos que levo comigo, cumpridos em nome de Deus e de nosso povo. A morte não marca o meu fim, ela leva meu corpo, mas ramifica minhas ideias. Leva minha imagem, mas perpetua minha mensagem. Fica também a forca vazia e o espetáculo desfeito. A monarquia ganha de presente mais um problema, enquanto que o povo ganha mais um nome a quem lembrar na sua luta pela liberdade verdadeira e definitiva.

Um pássaro cruza o ar sobre minha cabeça. Olho para o alto e ele me faz ver o céu. Esta límpido, sem nuvens, combinando com o calor do Recife e com o sangue aquecido de meu corpo que sente o coração palpitar seus últimos batimentos. O infinito me consola, me eleva a alma numa carícia última de Deus que recebe meu espírito. Foi dada a ordem de execução. Não ouço mais nada. Vejo pouco. Encaro meus algozes somente. O suor frio me tampa o rosto amedrontado. Fecho os olhos de repente. Já chega de tortura. Espero a morte do meu corpo serenamente. Que Deus receba minha alma e perdoe meus pecados. Que o Senhor tenha...

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 25/06/2011
Código do texto: T3055930
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