Pintando um apartamento no bairro paulistano do Cambuci

Poucas coisas na vida têm mais valor que uma boa amizade. Daquelas de se partilhar sonoras gargalhadas, conversas sem fim, passeios, dividir um prato de esfirras no Brás e se partilhar também um pouco do pranto que a vida apresenta sem economizar.

Era final dos anos 70. Tempos sombrios aqueles: tempos de crise econômica misturada à ditadura que ainda nos tirava o sono e nos deixava pálidos. Tempos de insatisfação e desemprego e centenas, milhares de contas a pagar. Eu não sabia onde encontrar mais energias para o trabalho que começava bem cedo, o estudo que eu pouco ou quase nada compreendia, as longas jornadas , a distância quase infinita num ônibus abarrotado para se chegar à universidade. Tempos sombrios aqueles e eu lutava por desenhar esperança encima desse tempo nublado e de gigantescas trovoadas. Tempos de vento cortante ainda no final dos anos 70!

E a minha amiga de muitas horas resolveu morar num apartamento no largo do Cambuci. Que vitória! Ela mal havia arrumado emprego num banco público e estava saindo do cortiço. Foi com ela que pude conhecer esse tipo de habitação, o cubículo com a cama encostada na parede de muitos buracos e marcas de umidade. A cama, cujo colchão se perdeu por conta das enchentes que muitas vezes assolavam partes do bairro operário do Cambuci. Nesse cortiço, vi o único banheiro a ser compartilhado por todos os moradores, a inexistência da santa privacidade, a exposição a olhos curiosos, a mentes à procura de fofoca e insinuações. É cruel demais a pobreza! Mas a pobreza pode também ser transformada e a lâmpada vai se acendendo , mesmo que lentamente.

A minha amiga, a Ana, junto da mãe, se mudou para o apartamento. Era hora de ajudar e então resolvemos – outra amiga, eu e a nova moradora - pintar a casa nova. Sábado à noite, com tinta barata, bem rala, nos colocamos a serviço. Mal sabíamos o que fazer para taparmos buracos enormes que se exibiam em todas as paredes e íamos trabalhando com a massa fina, imaginando que se era assim mesmo, íamos tentando remendar e a massa logo acabou. E nós, principiantes nas artes de cuidar da aparência de uma casa, deixamos para outra vez e continuamos manuseando os pinceis, o rolo e a amizade ia se tingindo de cores mais fortes na compreensão das dificuldades, e sempre com risos e umas tantas piadas.

No dia seguinte, fui comprar o pão para a nossa família e aproveitei e comprei o pão para as novas donas da casa. Levei até lá e fui recebida com o sorriso mais largo desse mundo pela mãe da Ana, a dona Leonor. Ela recebeu o pão com um carinho tão intenso, brilhante e vívido que não pude esquecer. Foi pão com acolhimento na sua expressão mais humana e divina. Como a amiga estava dormindo, a dona Leonor me pediu para que eu trocasse as

pilhas do seu radinho, pois ela queria ouvir o jogo do seu Coringão. Sim, elas não tinham televisão.

Desde então eu guardei um sentimento de amor por aquela senhora tão negra, pura e trabalhadora que não se perde no tempo. Aquela pintura na parede, aquele pão, a presença... Uma vez uma pessoa com alta mediunidade me perguntou quem era a senhora negra que estava sempre ao meu lado nos momentos mais difíceis. Pensei: só pode ser a dona Leonor! Tenho uma peça de cerâmica numa das minhas estantes: uma senhora negra, grávida, segurando a própria barriga com ambas as mãos. O nome? Só pode ser ‘Dona Leonor”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 01/07/2011
Reeditado em 01/07/2011
Código do texto: T3069467