A CASA DO FORNO

Nós humanos somos seres complexos, e é por isso que somos humanos. Mal comparando, perdoem aqueles que fazem uso da biologia, somos semelhantes a um novelo, muito bem urdido, fechado, cujo fio é emendado por vários nós. Um só fio, porém com muitos nós, cheio de emendas. Com princípio, final e, os respectivos interstícios a cada nó. Portanto, princípio, meio e fim, como qualquer história que se preze que quase sempre começa: era uma vez.

É, pois, em cada interstício composto por vários escaninhos desse novelo, que são guardadas as nossas memórias. Todo esse novelo, poderíamos também compará-lo a uma fita magnética, que vez por outra rebobinamos. Umas vezes, sem a consciência do ato, desse querer, outras vezes, deliberadamente, à procura de algo que perdemos sem saber quando ou onde. É nesse revisitar, nesse reviver de emoções, à procura da fonte como nas lendas ciganas, que vamos beber a inspiração e nos refazermos do cansaço quando, o caminho se faz mais áspero, e o sol a pino é como fogo vivo.

Dos tempos e lugares que guardamos na lembrança aqueles de nossa infância são com certeza os que mais vivamente gostamos de recordar, pois se alojaram indelevel-mente na nossa alma, e quando assim acontece é bom, pois, aquela criança que guardamos dentro de nós, surgirá entre as memórias do tempo que se fez em nós, como a flor do pântano, para dar mais cor e beleza ao mistério que é a vida. Atrevo-me a dizer que, nenhum homem, por mais realizado que se diga, será feliz, se teve uma infância da qual não lembre com ternura e com saudade. Tenho muita pena das crianças sem infância e, mais pena ainda daquelas que tiveram uma infância madrasta.

O tempo da nossa infância é aquele pedaço do fio do qual todo o resto do novelo dependerá para se manter coeso. Chamem de psique, ou outro nome que quiserem. Aquele tempo haverá de marcar de forma indelével toda a história da nossa vida.

Tomemos, pois, o fio do novelo, porque de novelos é que se fazem as meadas.

Fiz todo um preâmbulo para contar uma história, que disso podia prescindir, mas o fiz propositadamente, para com um exemplo concreto, corroborar ainda que palidamen-te, aquilo que acima disse. E o faço com a memória da infância, a fonte mais generosa e límpida onde costumo matar a minha sede, na procura de respostas e bálsamo para minhas angústias, dúvidas, ou casuais devaneios.

Vamos, então, até à casa do forno - uma das tantas lembranças boas de minha infância, que inesperadamente me veio de mansinho, docemente. Casas do forno, assim eram chamadas as casas que abrigavam o forno em que se cozia o pão, e que para lá dessa finalidade precípua, era um espaço muito agradável principalmente no inverno, pois, com o calor do forno a lenha, todo aquele espaço ficava muito acolhedor.

Aquela casa do forno era muito mais do que uma casa de forno, pois, nela também estava instalado um alambique caseiro. Era assim uma autêntica fábrica caseira. É que era da pertença do meu avô Lourenço, um terreno só de árvores nativas, mais propriamente um pequeno bosque, de loureiros, carvalhos, azevinhos, e um enorme medronheiro, que no tempo próprio vergava ao peso de tantos e graciosos frutos, os medronhos. Para aqueles que não sabem, medronho é uma pequena fruta, um pouco menor que uma cereja, avermelhado por fora e amarelo por dentro, adocicado, próprio para o fabrico de aguardente: fina ao paladar, mas traiçoeira por seu teor alcoólico.

Mas além do forno e do alambique, havia também uma grande banheira feita de latão, e naquele tempo ainda em bom estado de conservação, e de um sofisticado sistema de serpentinas para o aquecimento da água. Aquela engenhoca fora pertença de um padre tio de minha avó Adelina, que entre outras coisas nos legou uma rica biblioteca. Coisas antigas com sabor ao sagrado. Não sei por que ainda era ali conservado aquele que teria sido um valioso utensílio; talvez para lembrar de que, a higiene do corpo, a par da higiene da alma, fazia parte dos bons costumes naqueles românticos tempos de antanho.

Casas do forno, casas da eira, eiras, espigueiros ou canastros, moinhos de água, a que também alguns chamam de azenhas, levadas de águas mansas, rios de lembranças: em vós navego meu barquinho de papel ao sabor das águas sempre a correr incansavel-mente para o mar, sem poderem retroceder, nunca. Deixai-me ao menos recordar. Ah, como é bom recordar!...

obs.: Do livro no prelo, Caminhos do Viajante.

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 04/07/2011
Código do texto: T3075028