O SENTIDO DA VIDA
Uma noite destas saí cansada do meu trabalho após exaustivas nove horas de elaboração de idéias e solução de situações. Olhei o relógio e suspirei porque apesar de ser mais de sete horas da noite eu tinha ainda uma longa jornada pela frente. Naquele dia, além das minhas nove horas trabalhadas, eu já tinha ido ao banco, à farmácia, conversado com a diarista, olhado a agenda das crianças, separado a granola para a aula de culinária do meu filho caçula, comprado os três envelopes brancos para a filha do meio, buscado as crianças na aula de música e levado para a escola. Comecei esta maratona às sete e meia da manhã e sabia por experiência que não terminaria até que o relógio marcasse por volta das vinte e três horas. Como toda mulher da minha geração, eu embarquei nesta sem saber que um dia se falava em desigualdade de sexos. Quando eu era criança nem cogitava o que era isto. Para mim era normal que minha mãe, tias e primas se descabelassem para dar conta de todas as atribuições que possuíam e só a partir de uma certa idade é que eu fui me inteirar de que nós mulheres havíamos conquistado direitos que nossas avós nem sonhavam. O problema é que os direitos sempre acabam sendo acompanhados de deveres e sinceramente não vejo muito onde está a igualdade nos dias atuais. De qualquer forma, não é o meu objetivo discutir este assunto aqui. O fato é que saí do trabalho exausta, amaldiçoando o salto alto (mais um ícone da mulher moderna e bem sucedida) e dirigi feito uma alucinada para o supermercado mais próximo. Sim, na minha lista de ações do dia, eu tinha que pensar no jantar e precisava desesperadamente colocar alguma coisa saudável, apetitosa e de preparo extremamente rápido na mesa da minha família. O fato também é que sou mulher e no meio desta corrida alucinante que não é exclusividade minha, nós, criaturas multitarefas do ex-sexo frágil (que de frágil nunca teve nada), temos ainda um tempinho para olhar no espelho e encontrarmos os defeitos causados pelo tempo, pelo stress e pelas noites mal dormidas. O espelho do meu carro é um algoz nesta hora. Olhei para ele que me sorriu de volta. Um sorriso cansado e sem graça e no final dele meu cabelo em evidência com raízes escuras e fios brancos saltando em meio às pseudo madeixas louras. Nem preciso dizer que se meu estado de espírito estava ruim, ficou pior na hora. Estacionei o carro, fiz minhas compras mecanicamente calculando mentalmente quando teria tempo (e disposição) para retocar aquelas raízes que passaram a me incomodar mais do que os pés doloridos ou as inúmeras coisas que eu tinha ainda por fazer naquela noite. O interessante é que a partir daquele instante com o espelho, para todo lugar que eu olhava, só via pessoas com roupas, cabelos e unhas bem feitas. E naquele momento constatei, através de uma distorção perceptiva causada pela minha auto estima que estava no chão, que eu me julgava a mais relapsa, a mais largada e porque não dizer a mais incomodada das mulheres. Se todas aquelas criaturas ao meu lado tinham tempo para fazer tudo o que eu fazia e ainda terem unhas e cabelos bem feitos, por que eu estava naquele estado? Continuei minha passeata compulsória por entre os corredores e só quando me preparava para sair me dei conta de que uma amiga me acenava a alguns metros de distância. Ela sorriu e se espremeu por entre as pessoas empurrando um carrinho lotado de compras e assim que me alcançou, me abraçou cheia de energia. Eu a olhei com carinho. Sabia que havia passado por uma cirurgia complicada há uns dois meses. Sabia também que estava passando por sessões de quimioterapia, daí o chapéu lilás combinando com o lenço charmosamente enrolado no pescoço. Ela sorriu novamente e perguntou como eu estava. Suspirei e respondi alguma coisa tentando resumir meu dia atribulado. Ela continuou sorrindo e disse que tinha feito uma pequena corrida naquela manhã. Nada do que costumava fazer, mas já era um começo, completou com um sorriso amplo e cristalino. Olhando alegremente para mim, ela continuou dizendo que tinha passado o dia fora, ora em aulas de italiano e espanhol, ora pagando contas ou fazendo compras na feira e no supermercado. Continuou dizendo que tinha esquecido do pão do lanche dos netos que naquela noite ficariam com ela e que teriam uma noite animada pela frente. Olhei-a com simpatia me admirando diante de tanta disposição. E então ela fez algo que me deixou sem palavras. Enquanto falava e ria, ela reclamou do calor e tirou o chapéu lilás. Inúmeras cabeças se voltaram instantaneamente e assim como eu, olhos fitaram a cabeça quase lisa. Ela, na sua naturalidade de quem já havia compreendido que o sentido da vida somos nós quem fazemos, continuou rindo e brincando comigo. Eu então, pedi para tocar os minúsculos fios que estavam crescendo. Ela me corrigiu. Eles não estavam crescendo, apenas não haviam caído como o restante do cabelo, mas que aquilo não a incomodava em nada, afinal estava ali, viva e falante. Eu gentilmente passei a mão na cabeça dela que riu e achou graça do meu gesto. Se me lembro bem, ela ainda disse alguma coisa antes de colocar o chapéu lilás e nos despedirmos. Ela radiante, eu em frangalhos. Sei que o que vou relatar a seguir pode soar piegas para muitos. Sei também que outros dirão que estas histórias acontecem todos os dias e não há novidade nenhuma, mas para mim há. Naquela noite reaprendi algumas verdades:
- Nunca estamos satisfeitos com o que temos, mesmo quando temos mais do que o suficiente;
- Na maioria das vezes, não valorizamos ou priorizamos o que realmente dá sentido à vida, exceto quando perdemos;
- Que alguém, em algum lugar compreende que nos perdemos nesta maluquice que chamamos de vida e este “anjo” nos manda situações para nos chacoalhar e nos mostrar que há algo mais do que a mecanicidade em que vivemos.
Naquela noite cheguei em casa e segui minha rotina exatamente como havia feito nos outros dias da semana. A diferença foi que observei meus filhos rindo e ri com eles, compartilhamos o jantar e fizemos juntos e sem pressa a lição de casa. Às onde e meia da noite quando fui me recolher, o espelho me olhou novamente. Minhas raízes escuras e meus fios brancos ainda continuavam lá. Eu os observei com carinho. Sorri com calma e dei a eles apenas a atenção que mereciam e nada mais. Dormi uma noite serena agradecendo “pelo sentido da vida” e por perceber o quanto possuo e o quanto me falta aprender.
Minha querida amiga, que a divindade a continue premiando por toda esta luz e sabedoria que você compartilha com pessoas tão frágeis e cegas quanto eu estava naquela noite.
Muito obrigada.