O HOMEM DE UMA PERNA SÓ

No meu caminho a minha casa, deparei-me com um homem arrastando-se no meio-fio, aos berros, gritava coisas indecifráveis, acenava para os carros que passavam, pedia, suplicava num dialeto que só os corações poderiam entender, algumas parcas palavras balbuciadas faziam sentido, em sua maioria eram desconexas. Não pude me conter, ele parecia não estar entendendo o que se passava, tinha o olhar vago, absorto. Apeei da moto, cheguei mais perto, tinha cabelos grudentos, poucos dentes, uma só perna, vestia-se de uma bermuda enorme que lhe deixava amostra a genitália, ele me fitou como quem fala sinceramente – Tem pão? Tem bóia? Me dá uma bóia! – Saí apressadamente, prometendo-lhe arranjar uma refeição. Cheguei em casa dei um “geral” nas panelas e preparei-lhe um belo prato de almoço. Voltei ao local onde o tinha deixado, ele já se arrastara bastante, uns 500 metros pelo menos. Quando me aproximei notei que ele já havia se livrado das roupas, agora estava sentado sobre a própria bunda, bem, tinha que alimentá-lo e o fiz, dei-lhe o prato e água. Notei que ao pegar o copo d’água ele se preocupou em lavar as mãos, antes de tudo, depois se pôs a comer.

Bem, não preciso dizer que me senti como se ganhasse o dia, e confortavelmente subi na minha motocicleta e fui trabalhar. Assim, não é que eu tivesse prestado relevante serviço à sociedade, tampouco que isso significasse grande alento ao mendigo, mas funcionava como um “dever cumprido” aquietando momentaneamente meu coração, embora minha mente soubesse que era só uma capa criada pra eu ter o direito a me acomodar.

Esqueci o episódio, talvez por achar que o mendigo já chegara até aquele momento, sobrevivendo, sabe Deus lá como e poderia perfeitamente continuar sua sina sem que sua lembrança voltasse a me assolar. Exultante engano.

Quando voltei da loja, lá pelas dez, encontrei o quiproquó armado em frente a minha casa, vários curiosos se aglomeravam em volta do louco que grunhia, vizinhos incomodados, reclamavam do alarde, outros se compadeciam, já haviam lhe providenciado novas vestes e um guarda-chuvas, equipamento obrigatório em Belém, e lá fomos nós dar início a nossa via-crúcis, alguma coisa tinha que ser feito. Por onde começar? Optamos por acionar alguns contatos, alguns foram à polícia, outros procuraram a defesa civil, alguém ligou para a imprensa. Eu conversei com algumas pessoas e recebi informações de que uma Diretora da Casa de Acolhimento da FUMPAPA, órgão de assistência social do Estado, morava em um conjunto habitacional às proximidades, me dirigi até sua casa, chamei a porta, fui recebido por seu pai, pessoa insolente, de cara perguntou do que se tratava, eu disse querer falar com sua filha, ele refez a pergunta, daí eu me vi coagido contar-lhe os detalhes da visita inesperada, depois de me ouvir atentamente, com aquela cara do velho na capa do disco do Planet Hemp, disse: “Sinto muito, mas, minha filha não tem poder para lhe ajudar” e desatou a falar mal do governo, da reportagem do médico que assina o ponto e não vai trabalhar, da falcatrua que impera na Assembléia Legislativa do Estado, reclamava que essas coisas só sobravam pra ele, que cuidar de mendigos é atributo do Estado e que sua filha já cumprira sua jornada diária e nada podia fazer, e concluiu se maldizendo, se sentindo um idiota por votar naquelas pessoas e por fim se dizendo indignado. Depois de tê-lo ouvido falar por quase quinze minutos, tive que interrompê-lo – “Me desculpe Sr. mas essa sua indignação não vai me ajudar com “meu mendigo” é por causa de gente como o Sr. que ele existe, nesse momento ao lado de onde ele se encontra, acontece um culto evangélico, onde bradam o nome de Deus numa altura tamanha que certamente o estão incomodando, mas ninguém se quer ventilou a hipótese de abrigá-lo durante a chuva ou o frio da madrugada, e eu não vim pedir para depender do poder da sua filha, só quero que ela me dê uma luz, um direcionamento de como proceder, eu tenho um problema e busco ajuda de quem se dispor a me ajudar...”. Meus gritos foram interrompidos pelo resto da família que se aproximou, tudo isso se passou e eu estava no meio fio e eles, achando tratar-se de um militante tresloucado, protegidos pelas grades da casa. De pronto a Sra. Diretora disse que tudo o que poderia fazer era ligar para o Corpo de Bombeiros para tentar um resgate, mas que nada poderia garantir e que entraria em contato. Nada iria acontecer, ela só queria se livrar de mim, se fazia isso comigo o que faria não com o pobre desfavorecido?

Voltei ao local, ora vejam só quem chegou rapidamente, a imprensa, filmando, entrevistando, sensacionalizando, excitando ás pessoas a tornarem-se altruístas em frente suas lentes, naquele momento todos pleiteavam seus cobiçados minutinhos, o mais hilário, se é que tem algo de engraçado nisso tudo, é que enquanto os repórteres armavam seu programa de auditório, o mendigo se calou e se arrastou de fininho, mais adiante tirou a roupa de novo e se mandou saltitando num pé só.

Essa história não acaba bem, ninguém conseguiu nada com nenhum órgão responsável, nunca me senti tão impotente, o Estado simplesmente ignora a existência desse tipo de ocorrência, só aguarda que desfecho seja o “normal” e o resgate seja feito pelo carro-tumba do IML, esse sim sempre vem, afinal, o paciente já não vai mais onerar os cofres públicos.

Só pra concluir minha constatação, dinheiro combina com tudo, saúde combina com a vida, dinheiro e saúde combinam com o sistema, dinheiro sem saúde assistência garantida, saúde sem dinheiro até que dá pra levar, mas quando falta os dois... repitam comigo...Pai nosso que estais no céu...

Anderson Du Valle
Enviado por Anderson Du Valle em 08/07/2011
Reeditado em 10/07/2011
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