FORREST GUMP REVISITADO (1)

Cena 01: Minha mãe na cozinha com minha avó, enrolando docinhos de leite condensado. A mesa da cozinha cheia de salgadinhos que eu, infelizmente, não tinha altura para alcançar. No dia seguinte eu estaria fazendo cinco aninhos. Elas preparavam a festa para mim. Eu ansioso, já pensando nos presentes. O rádio ligado, certamente para ouvir boleros e sambas-canções, que minha mãe sabia de cor e cantava junto. De repente, um boletim em edição extraordinária interrompe a todos. Não entendo a notícia, mas é grave, minha mãe e minha avó começam a chorar desesperadamente, quase como gritando de dor. Não entendo como minha festa de aniversário poderia ficar atrás de qualquer notícia, por pior que fosse. Pior, logo em seguida minha mãe, com jeito e soluçando, vem me dizer que no dia seguinte não haveria mais festa. Era o dia 24 de agosto. Getúlio Vargas havia dado um tiro no coração.

Cena 02: Estou sentado no corredor da minha casa, tenho quase certeza que era o Nestor que estava comigo. Falamos de ir ao centro, dar um passeio, como os adolescentes costumavam fazer naquela hora, quando já haviam estudado e feito os temas. Alguém chega com uma cara de susto e nos avisa: “Não saiam de casa agora. O exército está na rua com tanques”. Ficamos ali parados, no corredor, sem saber se acreditávamos ou não, sem saber em que isso nos afetaria. O colégio seria suspenso? A gente não poderia mais ir ao cinema nos fins de semana sem correr perigo? Pouco depois vimos pelotões armados passar na nossa rua. O golpe militar de 64 havia estourado.

Cena 03: Naquele tempo nós, Roberto, Alemão e eu, saíamos de madrugada, em conversas que o Roberto, culto que era, chamava de “peripatéticas”. Só mais tarde fui saber que essa palavra se referia ao modo como Aristóteles, o filósofo grego, ensinava: caminhando. Em nossas caminhadas discutíamos de tudo, desde o sentido da vida até marcas de cerveja. Uma noite, nossa inocente caminhada foi bruscamente interrompida por um caminhão cheio de soldados armados de fuzis e metralhadoras, que nos encostaram numa parede, revistaram nossos bolsos e nos inquiriram rispidamente sobre o que estávamos fazendo aquela hora na rua. Como nossos pais. Um deles, revistando os meus bolsos encontrou um objeto suspeito que o fez recuar e apontar a arma dizendo que eu tirasse lentamente o objeto do bolso, o que fiz obedientemente. Um perigoso e subversivo par de óculos escuros foi apresentado. Fomos liberados. A ditadura estava no auge.

Cena 04: Chego na casa de um amigo que era mais abastado, porque o pai era dono da padaria da esquina. Isso lhe permitia a ter toca-discos ou “eletrola” e comprar novidades em compactos de vinil. Ele me pergunta se eu já tinha ouvido aquela música, e coloca um compacto a tocar. Num determinado ponto da canção o falsete entrava forte. Os vocais eram muito femininos, mas os cantores eram homens! Fico chocado e ao mesmo fascinado pela ousadia. Meu Deus! Que descoberta! Aquilo era diferente de tudo que eu já havia ouvido, era melódico e também rebelde, inconformado, revolucionário. O problema imediato era saber que meu pai não iria aceitar que eu ouvisse aquilo, estaria, certamente, fora de seus padrões de bons costumes. Muito tempo esperei até poder levar aquele compacto para casa. Era “I should have known better” dos Beatles.

Cena 05: Passeávamos, os três inseparáveis amigos, como sempre, certamente discutindo o último LP dos Beatles, decifrando suas mensagens ocultas, que só nós entendíamos e o resto do mundo ignorava. Uma hora, vimos que, na Confeitaria Abelha, todos estavam grudados numa televisão preto-e-branco colocada no alto. Paramos para ver do que se tratava. Tinha uma imagem borrada aparecendo. Deu para ouvir, então, o narrador dizendo que o homem acabava de pisar na Lua. Não demos muita importância. O último LP dos Beatles era melhor.