CONTENTE MÃE GENTIL - CRÔNICAS HISTÓRICAS

O céu está belissimamente de um azul límpido, tão cheio de vitalidade que eu não consigo esconder em mim as lágrimas e a emoção que sinto ao ver esse azul que me remetem imediatamente ao mar, ao ir e vir das ondas pelas quais tanto naveguei, sempre observando as cores e sentindo o frescor com um sabor de esperança de uma chegada em que eu pudesse enfim conseguir um pouco de paz e sossego. Esse azul transporta-me para horizontes infinitos, e por um instante esqueço-me de mim mesmo e de minha condição nesta cama, apenas visualizando a janela que me permite contemplar o infinito.

Estou aqui agora, impotente, dentro desse luxo digno da mais alta realeza, neste quarto em que um dia vim à vida e que agora parto dela, num paradoxo de início e fim, de nascer e morrer. Um lugar de chegada e partida, como tantos foram para mim durante minha curta e prolongada vida nesta terra. Vejo a tristeza em Maria II, minha filha amada, digna rainha de Portugal, por quem lutei para que estivesse reinando com decência e Dona Amélia, minha segunda esposa, que aqui dedica a mim o amor que nem sempre correspondi. Aqui, acompanham meu fim, incansáveis na minha luta contra esta tuberculose que me corrói o corpo e me dilacera em dores vivas, como a pagar por tantos erros e a me eternizar na história pelos meus tantos feitos. Sinto uma nostalgia da vida, uma melancolia demasiadamente depressiva. Reviro minhas pernas que hoje de tão fracas recusam-se a me obedecer como outrora, como há tão pouco tempo eu fazia.

Observando a janela, vejo o arrastar das folhas por um vento suave anunciando em breve o fim desse verão e apregoando o outono que trará tempos mais frescos e quem sabe um frescor também em minha alma. Algumas folhas secas voam pelo ar e posso observá-las desse exílio forçado em minha casa. Esse burburinho me leva de volta ao Brasil, terra amada, nação querida, pela qual nutro uma especial afeição. Foi lá que minha vida se desenvolveu, que aprendi a me tornar homem e também foi lá que cometi alguns erros dos quais deveria ter me redimido. Erros políticos são impossíveis de não se cometer, como não podemos impedir que uma chuva às vezes venha sem controle a destruir pessoas e plantações. Desses faço minha “mea culpa” e deixo para o julgamento da história, o melhor tribunal pelo qual a justiça se faz perfeita, mais cedo ou mais tarde. Mas com ela, ah, com ela eu trago um coração apertado... Leopoldina, esposa fiel, colhida como uma flor ainda a exalar o mais sublime dos perfumes, rudemente como cortada por um facão grosseiro, ela se foi sem que eu pudesse me despedir e me desculpar. Foi-se simplesmente de mim, deixando-me livre para que eu me envergasse pelos caminhos da solidão de ter tido tantas mulheres, e perdido porém aquela única que de fato assumiu por mim uma afeição irrefutável. Dói-me um pouco esta despedida, embora possa sentí-la aqui como um vento suave a esperar o momento de minha partida para que me acompanhe para a eternidade de perdão e amor que a ela neguei nesta vida. Minha linda imperatriz esteja comigo...

Posso ouvir ao longe o efervescente barulho da multidão me pedindo para permanecer no Brasil. Foi um dos dias mais felizes de minha vida. Recordo aquela gente toda a estender as mãos para mim, como um pedido de socorro grafadas naquelas assinaturas tantas, que me comoveram a ponto de tomar uma das decisões mais radicais de minha vida. Romper com Portugal foi difícil. Era romper com meu pai, com minha história, com tudo aquilo pelo qual havia lutado. Quando ergui minha espada e disse um basta, foi como se uma montanha fosse retirada de cima de mim. O Brasil agora vive seus anos de glória e se refaz como nação e como país que busca seu próprio caminho e seu jeito de ser. A contente mãe gentil de seus filhos agora a eles somente pertencem. Eu, aqui neste palácio, sou refém de minha própria história e do caminho que trilhei para consolidar meu império que de meu pai herdei.

Consigo, ouvindo o burburinho das folhas que anunciam o outono, voltar àquela sala magnífica, em que fui aclamado imperador. Maria e Amélia parecem estranhar minha serenidade. Fixo os olhos nelas e viajo em meus jovens pensamentos. Como que num passe de mágica, estou naquele salão tão ricamente decorado, cercado de tantas pessoas e vejo o trono... Ah o trono, como é bonito! Com o báculo e a coroa real, torno-me senhor de uma nação imensa, rica, com um povo trabalhador. Sinto que o Brasil tem tudo para ser uma nação próspera e exaltada. Como foi doloroso partir de lá e deixar meu filho, que ainda esta distante de mim, ainda tão pequeno, aos cuidados de outros. Sinto, por um instante, até o calor tropical do Rio, o frescor das montanhas de Minas, o calor humano dos brasileiros que me recebiam com festas e homenagens.

Deitado nesta cama, relembro lutas, batalhas, guerras tantas, aqui e lá, em momentos que tive que usar de força e violência contra meu próprio povo. Não queria que tivesse sido assim. Um governante deve ser amado e respeitado, e creio ter sido muito falho nestas questões. O certo é que meu filho esta lá e minha filha aqui, governando os reinos que nossos pais conquistaram e na esperança de que eles os conservem, embora vejo horizontes tão diversos para a humanidade e para os costumes que me seguiram durante a vida. Vejo o sangue dos escravos escorrendo pelos tantos pelourinhos e envergonho-me de não ter conseguido a abolição, embora sempre entendi a escravidão como um atraso. É tanto o que recordar que creio não ter tempo para fazer meu exame de consciência. Esvaem-se de mim as forças vitais que a cada dia me aproximam do fim.

Perdido na imensidão de meus pensamentos nem vejo a noite chegar e o dia findar. Da minha janela ainda aberta, a meu pedido, observo a noite. A lua dá voltas por sobre o planeta e nesse instante presenteia-me com uma aparição bem à minha frente. Esse ponto claro no escuro traz-me ainda os pensamentos de uma vida escurecida por tantos atos indignos da realeza. A lua me obriga a contemplar a imensidão do céu, a pequenez enorme das estrelas que me fazem ver que sou apenas um humano a mais na terra. Apenas um nome, apenas Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, ou para facilitar Dom Pedro I, a fazer suas reflexões que penso, todo homem faz em seu leito de dor. Diante de toda a grandeza do universo, eu sou apenas um grão de areia nesta cama, agora inutilizado pela dor e adormecido por lembranças de tempos áureos.

Um momento último, antes do meu sono, que também talvez seja o derradeiro, contemplo sombras que vagam por entre os espaços deste grande quarto. São apenas as lembranças de um homem que agora despede-se da vida. Entre essas sombras esta ela, minha Leopoldina a sorrir para mim, como um afago de perdão esperado, uma reconciliação para consumar a eternidade do matrimônio e a cumplicidade de seres que se amaram, e talvez por um motivo ou outro estiveram de lados separados.

O sono me vem. Amélia deita-se próximo de mim, mas não dorme. Espera, vigia, vela por mim. E eu recolho-me na imensidão de mim mesmo e num ato de misericórdia de meu próprio corpo concede-me um sono já quase irresistível. Num último instante ainda tenho forças para fazer um sinal da cruz, pedindo que Deus me abençõe e olhe pela minha família e pelo meu povo. Meu povo tão numeroso, nos lugares em que reinei, para que não lhes falte nada, menos ainda a esperança. Pelos meus filhos, que tenham sabedoria para governar e para conduzir suas vidas. No cansaço deste dia fecho os olhos. Quero adormecer e sonhar. E se Deus permitir, quero amanhã acordar para um novo dia, até que Ele me permita e me conceda tempo para rever minha vida e dar conselhos à minha Maria. E que assim seja até quando Deus quiser.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 18/07/2011
Código do texto: T3103121
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