No meio do caminho

Carlos Drumond de Andrade conta num poema que havia uma incômoda pedra em seu caminho. "No meio do caminho tinha uma pedra" – escreveu ele – "tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra".

Geralmente, não gosto da maioria das poesias que leio e por isso li “poucos” poemas – se também considerarmos os inúmeros existentes que nunca leremos. E este "No meio do caminho" então...

Mas não me atreverei a dizer mais nada de mal sobre o poema de Drumond; porque foi Carlos Drumond quem o escreveu e eu, comparado a ele, não sou ninguém. Entretanto, sei por que ele o escreveu: não apenas porque ele era um poeta, mas porque certamente houve mesmo muitas pedras no meio dos caminhos dele.

Para falar sobre suas dificuldades cotidianas, Drumond, entre outros artistas da Literatura, utilizou o símbolo da pedra no caminho, infinitamente melhor do que uma no sapato, para falar sobre as suas insatisfações com a existência. Décadas depois dele, numa cidade hoje melhor reconhecida nacional e internacionalmente, busco seguir o exemplo artístico de Drumond para dizer sobre os buracos em meio aos meus caminhos, e de tantos outros que circulam por João Pessoa. Por conta dos buracos e de Drumond, já cheguei mesmo a produzir um poema chamado "Buracos". Mas aqui não vou falar sobre meu esburacado poema, sobre a importância das pedras ou dos buracos metafóricos que, expressões das artes, falam tanto sobre realidades que detestamos e que, por ignorância e comodismo, não pensamos ter algum poder de mudar.

Mas há outra palavra que lembra atividades artísticas: “obras”. De um deus ou de vários, dizem que a partir da luz passaram a existir as primeiras obras manifestas da Vida no espaço infinito. E porque talvez também haja buracos negros no universo, e de o homem ser "a imagem e semelhança de Deus", apesar da qualidade “perfeita” atribuída à Criação, possamos nós por aqui de repente cair num daqueles pequenos ou grandes buracos produzidos pelo homem em sua sede de realizar também suas obras de artes.

Mas a palavra “obrar” também se refere à ação de defecar, e então talvez o que os homens (e agora também um monte de mulheres) queiram secretamente reconhecer seja sua capacidade de fazer e refazer verdadeiras cagadas, sem que abdiquem de suas tentativas de atingirem a perfeição ao realizá-las.

Com toda essa ironia de que às vezes sou capaz, aqui pretendo referendar o trabalho de alguns agentes a serviço de nossa administração pública. Ao vê-los trabalhando, penso até onde devo e posso avaliar suas ações como expressões da ignorância ou da perversidade. Porque reconheço uma distinção entre as duas, embora no fundo talvez mesmo a perversidade não passe de uma expressão da ignorância, “mãe de todos os males”, como pretendeu classificá-las certo cronista bíblico.

Embora haja muitos outros problemas graves a considerar, quero me deter nos problemas que nos causam alguns, por definição, verdadeiramente fundamentais: os buracos, agora espalhados por nossa cidade – embora não exclusivamente por causa da incompetência de um Prefeito ou de um Governador. Se estar em minha pele não tem sido às vezes fácil para mim, que dizer de estar na pele deles? Não queria estar na pele deles. Porque, de fato, como outros antigos administradores, eles não deveriam responder absolutos pelos mal feitos de alguns de seus subordinados. Há muitos homens e muito mais mulheres “de confiança” com eles. Infelizmente, muitas vezes, por razões tão várias quanto são as pessoas, a malevolência e as traições serão inevitáveis. Resta saber o nome dos bois e das vacas que nos trairão a fim de mandá-los pastar em outro lugar.

Enquanto isso, será bom se cada um de nós assumir ser também um dos donos de cada pedaço do lugar onde compartilhamos a Vida, onde outros, depois de nós, a compartilharão e assim fazer o mínimo que nosso bom senso nos diz poder fazer para amenizar nossas dificuldades e as de outros. Porque uma considerável parte de nós tem de fato um prazer mórbido de multiplicá-las. Como os borracheiros que jogam pregos no asfalto para compulsoriamente angariar seus clientes, muitos buraqueiros tem servido a grupos de pessoas, maus cidadão, destinados a produzir e multiplicar o mal. E mesmo quando os buracos são oficial e necessariamente produzidos como único recurso de corrigir algum mal subterrâneo – embora não por causa do chefe ou da chefe imediata do setor, mas porque há maus funcionários também entre aqueles contratados pelas empresas responsáveis pela prestação de serviços púbicos.

Vejam as fotos anexas: segundo informações da SEINFRA, o resultado final de um buraco feito pela CAGEPA para impedimento de um vazamento.

Tudo bem; se aquele foi um serviço necessário, ainda vou fotografar outros tantos buracos da cidade aparentemente realizados para manutenção ou recuperação de algum defeito, sem que nada justifique por que um deles, entre tantos, ficou aberto por míseros quinze anos!

Uma tia espirituosa, que caiu uma noite dentro do buraco com seu carro, quis reunir parentes e amigos em volta dele e fazer uma festa de aniversário de quinze anos do rombo. Embora o mais recente buraco de minha rua tenha sido cavado e tapado num dia – destruindo o asfalto que levou três anos para ser concluído (mesmo com a rua ainda sem saneamento básico!) – não entendo porque a quantidade de barro que tiraram dele não está de volta ao mesmo lugar.

Vi quando estavam tapando o buraco com paralelepípedos, e então imaginei que logo um daqueles irritantes remendos, mais uma mal feita camada de asfalto, pudesse outra vez possibilitar que os veículos transitassem novamente sem obstáculos.

Por que e para que aquele monte de barro continua lá, a não ser pela perversidade associada à ignorância dos muitos empregados sem a devida qualificação e respeito pela Coisa Pública?

Como por aqui provavelmente escreveria Drumond depois de ter se deparado com a cratera:

No meio do caminho tinha um buraco

tinha um buraco no meio do caminho.

Nunca me esquecerei desse acontecimento em minha vida.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha um buraco

tinha um buraco no meio do caminho

e agora há um monte de barro no meio do caminho.

No meio do caminho há um monte de barro.

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(Enviado por e-mail para amigos e autoridades competentes)