Comentário sobre “O orb” (seguido por críticas de fundo falsamente destrutivo)

“Antes que existisse o mar, a terra e o céu que a tudo cobre, a Natureza apresentava em todo o Universo um aspecto único. Foi o que teve o nome de Caos, massa rude e confusa, peso inerte, onde em promiscuidade e discórdia se achavam os germes das coisas”.

Ovídio – Metamorfoses

Certo, eu escrevo na fronteira. Adoro situações limítrofes, personagens atormentadas por suas percepções bobas, que em geral são minhas, minhas próprias e tolas fantasias pessoais. É que tudo isso me foi empurrado garganta abaixo, todas essas ilusões humanistas de que o ser humano é um animal brilhante e privilegiado. Vocês, com seus blocos de concreto, que sabem fazer com eles além de empilhá-los? Ao menos deveriam escolher um terreno mais firme...

Por exemplo, “O orb”. É um conto curto e imbecil, que parece não ter nada a comunicar. Mas é uma metáfora sobre viciados. Os orbs se alimentam da merda dos pombos, mas a boa merda é a que é retirada dos intestinos das aves enquanto elas ainda estão vivas. A matéria aliciante só é satisfatória quando age dentro, quando permeia o sangue. Extrair a merda dos pombos é como tirar proveito de quem produz a substância do vício, conhecer a fundo seus efeitos no metabolismo, participar no degradante processo de sua produção. A droga é visceral, sai de uma entranha e entra em outra, e enquanto está fora não possui qualquer glamour. Apenas quando invade e aniquila o sujeito, quando sua vida é esmiuçada a contento, só aí é que o elegante da situação pode ser descrito... quando as carcaças dos pombos jazem na cobertura, estraçalhadas, e o faxineiro amaldiçoa os orbs.

Simples psicopatia. Os maiores escritores foram e serão sempre grandes neuróticos. Os outros, os que se adaptam, são vendidos: falam aveludado, seus trabalhos são caixinhas de jóias cheias de merda dourada. Seus livros são como os pombos, seus leitores são como os orbs. Droga de literatura.

Não quero ser compreendido, nem sequer quero ser lido. Não há remédio contra a idiotice, a maior ilusão é crer no contrário. Os tolos proliferam como colônias de algas no mar de insatisfação que é a vida moderna, e a maior de todas as tolices é não perceber que isso está acontecendo agora.

De maneira que estou abrindo logo o jogo: vão pastar. Pastem dessa literatura articulada e empacotada, o passatempo, a ruminância. Estou aqui para ser cuspido fora, amargo, virulento e burro. Ignorante demais para escrever o que querem como querem.

É isso aí. Tenho milhares, milhões de palavras esperando para que eu desvele seu verdadeiro significado, para que eu as subverta de sua lenta degenerescência. Qual é o meu mote? Ora, não sejam ingênuos... difundir o Caos e, quem sabe, tornar-lhes a vida menos aborrecida e desprezível. Vocês não merecem, mas não vejo melhor modo de preencher o vazio de meus dias. Vazio este que vocês mesmos criaram, empilhando blocos de sólida, sólida solidão...

POST SCRIPTUM E FINAL DE PARANÓIA:

O OVO METAFÓRICO E A FRASE DO REI KULL

COMO BASES DA SABEDORIA E DA LUTA ETERNAS

Imagine um ovo. Base para metáforas, já foi analogia para a alma. Mas pense no tempo... não, pense no Tempo. O Tempo pode ser comparado a um ovo em sua tríplice manifestação. Passado, presente e futuro – ontem, hoje e amanhã. Digamos que (como costumo dizer) o presente não exista. É um fato: o presente nada mais é que o futuro em movimento para diante – ou o passado em sentido contrário. E agora iniciemos com as conjeturas. A gema, a célula embrionária que originará um ser vivo, poderia ser posta em relação com o passado. Por que? Porque é densa, é palpável, é constatável. A gema é o ontem que crescerá alimentado pelo hoje. Sim, a clara seria o presente, fluído rico em nutrientes, mutável, moldável. E o futuro, e o amanhã? A casca, obviamente. Para que o passado alimentado pelo presente possa prevalecer, deve antes romper a casca do ovo, representada pelo futuro. É assim que os pássaros (e os répteis) surgem; é assim, também, que evolui tudo quanto temporariamente habita os claustros do Tempo. Quando o passado irrompe, surge o futuro. “Não se fazem omeletas sem quebrar ovos”, reza o ditado.

Continuando com as analogias celulares, vejamos a diferença entre alma e espírito. Muitos pensam que não há qualquer disparidade entre os termos, mas enganam-se. A verdade é que a alma designa uma individualidade, enquanto que o espírito é plurálico. Nestes termos, a alma poderia ser comparada a um ser unicelular. Bem, este ser precisa ser alimentado. Já disse alguém que o espírito é instável como o vento. Eu digo que o é, mas como alimento. O Espírito Humano é um conglomerado, um grumo formado pelos retalhos, pelas sobras de capacidades e habilidades cujos possuidores não mais existem, talvez o próprio Inconsciente Coletivo, digamos, um ser pluricelular, talvez, mas não compacto (afinal, é um espírito), e sim disperso na atmosfera do planeta. Sim, o Espírito Humano não está dentro do Homem, mas fora dele, flutuando em alguma região de sonhos, um Sonhar dos Tempos, um Mundo das Idéias, um depósito de antigas novidades esperando para serem redescobertas. Muito bem. A alma, este ser unicelular e egoísta como qualquer individualidade, precisa se fortalecer, ou seja, precisa comer. Qual o seu alimento? A meu ver, é o espírito. Muitas pistas levam a este raciocínio. Uma delas é o sonho do Espírito Santo cristão, que no meu entender não passa da representação deste princípio.

O Pentecostes, o Consolador, o Agni hindu – repousam todos na Literatura. Não há outra opção. Você pode tentar invocá-los no interior dos templos, às margens das encruzilhadas à meia-noite ou nos recessos de sua mente virginal – será tudo em vão. O Espírito Santo está na linguagem escrita, devidamente compreendida e convenientemente posta em prática. Interpretações e práticas, no entanto, requerem razoável intelectualidade. Quantos e quantos bons escritos foram mal interpretados, gerando controvérsias e calamidades através dos tempos! A Bíblia, o Alcorão, os rabiscos de Voltaire e Nietzsche... textos mal lidos que, postos em prática por imbecis, resultaram em mares de sangue e milhões de mártires inúteis. Morrer por ideais híbridos e péssimas interpretações filosóficas é a forma mais idiotamente estúpida de morrer... é preferível morrer por nada.

Muitos dirão que sou um calhorda por escrever tão duramente. Não sou filólogo, não quero interpretar a semântica dos velhos termos. Não quero mergulhar o mundo numa luminosidade para a qual ele ainda não está preparado. Quero, sim, morrer lutando. A pena pode mais que a espada. Vocês, que se refugiam nas sombras, que buscam o meu sangue, saibam que não sou nenhum cordeirinho, não serei um Gasparzinho ou qualquer coisa do gênero. Não salvarei ninguém. Se aspiram tornar pior o mundo, desafio-os a verterem meu sangue sobre a terra. É o que querem? Pois bem, estarei pronto, levarei um pouquinho do seu junto comigo. Sou um bode velho sem nenhuma vocação para expiatório. Sou só mais um anticristo. Sou uma besta, e ainda assim tenho princípios, coisa que vocês, covardes, não têm. Rastejando em túneis sob as cidades, tramando os destinos da Humanidade, como répteis apocalípticos, vocês, das sociedades secretas, são a verdadeira e única escória. Não me interessam sua sabedoria e antigüidade: quanto mais antigos, mais corrompidos.

O momento da minha paranóia delirante passou: estou plenamente lúcido. Ka nama kaa lajerama! Venham, seus filhos da mãe! Frap he – prender-me pela cauda, não é assim? The watcher in the ring – o vigia no cercado, não é assim? Pois eu ainda não provei carne de lagarto. Eu me fartarei em suas carnes, assim como vocês têm se fartado nas minhas. Ka nama kaa lajerama! Cabeças de dinossauro, cérebros de passarinho, imediatistas do Inferno, draconianos pustulentos, refugo apodrecido dos céus! Ka nama kaa lajerama! Ka nama kaa lajerama! Ka nama kaa lajerama!!!

Nota a quem possa interessar: lajerama pronuncia-se ‘laierama’.

março/maio de 2006

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 21/07/2011
Reeditado em 21/07/2011
Código do texto: T3109070
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