"DORA DOIDA"

"A cidade em romaria

Foi beijar a sua mão:

O prefeito de joelhos,

O bispo de olhos vermelhos

E o banqueiro com um milhão.”

(CHICO BUARQUE DE HOLANDA)

Nas cidades do interior, indivíduos desajustados são mais notados do que nas grandes metrópoles. Principalmente, porque, a convivência entre as famílias que compõem as comunidades acaba sendo obrigatória, vista a proximidade das moradias. Nos grandes centros urbanos, a segregação das classes mais humildes, o tipo de moradia e o medo da violência dificultam a integração das pessoas. Tudo isso torna o indivíduo mais solitário e distante de seus semelhantes.

O episódio que vamos descrever ocorreu há mais de 40 anos atrás, portanto não havia televisão no interior e os carros existentes eram todos importados. Doralice de Jesus Silva era carinhosamente chamada por todos por “Dora doida.” Ela sofria das faculdades mentais, apresentando comportamento excêntrico. Pois, vivia gritando na rua: “ora palavrões, ora cumprimentando os transeuntes”.

Aparentava ter uns trinta e poucos anos, cabelos castanhos, curtos e lisos. O corpo era mais prá gorda do que prá magra. Gostava de visitar os vizinhos, principalmente nos dias de festas e velórios. Usava vestidos extravagantes, onde sobressaíam as cores fortes e grandes decotes. Estava sempre pronta para colaborar: dar um recado, ou ajudar a levar as compras do supermercado. Até mesmo, iniciar um jovem adolescente em sua primeira experiência sexual.

Entre os mais humilde era amada e aceita com naturalidade. Uma das coisas que mais gostava, era dançar na rua e freqüentar a igreja. Falava sempre de seu amado, o Paraguaio. No começo, imaginávamos que ele era fruto daquela mente excêntrica. Um dia, apareceu ela com um rapaz moreno e cabeludo. Ele falava pouco, parecia não ter defeitos, exceto por não trabalhar e beber demais.

Alguns dias depois, Dora anunciou que iria casar na igreja do bairro. No princípio ninguém acreditou, mas era real, o matrimônio realmente estava marcado para último sábado do mês de maio. Disse que gostaria de casar em maio, porque era o mês das flores. Como conseguiu o consentimento do vigário, continua sendo uma incógnita até os dias de hoje.

No dia marcado, a igreja toda enfeitada, com coral e outros aparatos aguardavam a noiva radiante. No altar, taciturno, paraguaio esperava pacientemente por sua amada. Os bancos do templo não comportavam a multidão que foi assistir a celebração do casamento. A maioria dos presentes era do bairro, mas havia também gente chique, desconhecida.

Os fotógrafos não perdiam nenhum detalhe: “desde a entrada triunfal da noiva muito bem vestida, conduzida por uma vizinha. Até o beijo no altar, concedido pelo noivo”. Na segunda feira, A crônica ao meio-dia, apresentada pelo famoso cronista local destacou o célebre acontecimento. Também o jornal da cidade, na coluna social, onde só saía fotos da alta sociedade, abriu espaço para aquele casamento inusitado. Assim, toda a comunidade tomou conhecimento que sua “querida filha” tinha contraído núpcias naquela data.

Uma grande contradição, a oficialização e aquiescência de uma sociedade provinciana conservadora a um ato fora dos padrões. Também, a cobertura da mídia. Acostumada a destacar apenas os eventos da alta sociedade, estranhamente noticiou com todas as pompas, inclusive patrocinando o casório.

Talvez, essa sociedade hipócrita e elitista fizera apenas uma pequena concessão, na tentativa de justificar sua própria xenofobia e preconceito. Posteriormente, paraguaio foi embora e Dora voltou às ruas. Muito tempo depois, a casa de sua mãe foi vendida e ela foi morar em um asilo...

João da Cruz
Enviado por João da Cruz em 23/07/2011
Reeditado em 13/09/2012
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