RECITAL DE PIANO

Cerquei-me de um ritual de preparação para minha apresentação de piano. Meu horóscopo do dia mencionava que a cor verde mar ajudaria a pacificar a guerra interior que estava por vir. Bem animador, pensei, mas resolvi acatar e me pus num vestido do tom sugerido.

Tentei meditar, rezar, ler, escrever, nada parecia me acalmar. Agora de mais nada adiantaria já estava sendo anunciado meu nome, cruzei o olhar com um amigo que acabara de se apresentar, sentei-me em frente ao piano enquanto cantarolava mentalmente a música que iria tocar, mirei a partitura, não podia acreditar estava tudo calmo demais. Tomei uma postura mais confiante e quando meus dedos pousaram sobre as teclas iniciou-se a confusão, não achava a escala do Dó maior, conferi minuciosamente o teclado e o que vi foi amedrontador, formou-se o sorriso do Gato de Cheshire, de Alice no País das Maravilhas. Meu pânico instalou-se, minha taquicardia desta vez me atacou quase fulminante. Foi nesta hora que vi o fantasma do compositor me olhando ameaçador, tentava em vão achar as notas certas, que insistiam em fugir dos meus dedos.

Ouvia o tom do meu próprio gemido elevado como um sustenido, entretanto me sentia mesmo bemol.

O público, esse não parecia perdoar, gargalhadas relampejavam no ar. Não conseguia me concentrar, não queria desistir, persistia em achar o Ré na Clave de Sol, ou o Mi na Clave de Fá, ainda assim as teclas brancas sorriam e as pretas zombavam, não obtinha nem uma pausa semibreve.

Até o tom da minha roupa estava contra mim, acho que meu oceano estava revolto e as ondas do meu vestido verde mar pareciam colcheias que rebentavam no meu desespero.

Queria me levantar sair daquele lugar, me virei para arriscar um pedido de desculpas a minha seleta platéia, ninguém me dirigia o olhar, estavam cabisbaixos.

Debussy foi o primeiro que vi, talvez porque amo tanto Clair de Lune, fechei os olhos e fiz uma promessa de nunca tentar tocá-la. Lado a lado Beethoven, Bach, Mozart, Strauss, Haendel, Schumann, Vivaldi, Schubert, Tchaikovsky, Mendelssohn, Ravel, Chopin e na primeira fila, nosso amado Villa-Lobos, tampouco ousava me olhar.

Atônita, me voltei para o piano, o sorriso do Gato de Cheshire aparecia e desaparecia... Fiquei ali sentada por não sei quanto tempo, fitando o nada na escuridão do meu quarto, esperando o ritmo do meu coração desacelerar. Meu recital de piano se aproxima. Mais uma crônica, “Desafiando Meu Medo”, está por vir.

Está desfeita minha promessa de não tocar Clair de Lune. Perdoa-me Sr. Claude Debussy, permita-me tentar.

Lilia Costa
Enviado por Lilia Costa em 24/07/2011
Reeditado em 20/09/2011
Código do texto: T3115174